26 março, 2025

meditação no labirinto dos séculos


MEDITAÇÃO NO LABIRINTO DOS SÉCULOS
 
(Ou: Como uma gota de água se recusa ao dilúvio dos dogmas)
 
 
Medito no cruzamento do relógio e do abismo —  
duas faces da mesma moeda engasgada ao espelho.  
Aqui, a História não é uma linha, é teia em surdina:  
o fio que une o insecto ao âmbar é o mesmo  
que cose a palavra ao silêncio,  
a lâmina à sombra do pulso.  
Os livros, cápsulas de mel e cicuta,  
abrem-se por dentes e por mãos.  
O vento sopra: viram pó os que temem voar;  
viram sombra os que lavram o chão sem semente.  
Os que sonham, esses, engolem a tempestade e ardem  
como se o próprio céu lhes mastigasse a espinha.
 
A tempestade esquece depressa os seus devotos.  
O insecto, liberto do âmbar, desfaz-se em pólen  
antes que a cidade lhe aprenda o nome.  
 
A Literatura é um vendaval de fôlego curto —  
desarruma palcos, derruba máscaras de gesso,  
entorta coroas de louros.  
Alguns escondem-se em casulos de certezas,  
outros dançam nus no açoite das perguntas.  
O poeta caminha no fio do abismo:  
equilibra-se com um verso na língua  
e o peso das horas nos calcanhares.  
Se tropeçar, que seja contra o crânio do século,  
e que os seus ossos risquem blasfémias  
na testa do futuro.  
 
Todo dogma é um teatro desmontado.  
Todo poema, a raiz que rompe o cimento com o riso.  
 
O que escreve o vento nas paredes do tempo?  
Riscos de carvão, fórmulas de sal,  
o desespero das mãos que sustentam  
o tecto desabado das utopias.  
Meditar é desenterrar o fóssil sem esperar a ressurreição.  
Antes de ser pólen, que fira a vista do rei,  
que infeccione a cidade de visões,  
que estilhace as janelas da catedral.  
 
Se o vento queima os ídolos, que os santos inúteis ardam.  
Se não há centro no Labirinto dos Séculos,  
sigamos as espirais de pólen e os rastos de lâmina.  
 
No fim, sobram as perguntas:  
Que mel sobrevive à geada dos dogmas?  
Que veneno é doce aos lábios do século?  
O poeta, agora estátua de sal,  
sussurra ao ouvido do relógio:  
"O abismo é o meu único tradutor - converte o rugido do tempo em seiva de silêncio."
 

Fátima Vale