11 julho, 2025

O SOL ESTE INFERNO DERRAMADO!

 
Inclemente de tão absoluto, tresanda a couraça ressequida de lagarto velho. Um sol de traves mestras, empalado no céu como espeto de porco, a escorrer banha incandescente pelas telhas, pelas espáduas dos homens, pelas tetas roxas das beatas, pela espinha rechonchuda das matronas que abanam os requitreques de feira como cortinas de quinta.
Raios o partam!
João de Araújo Correia, se o topasse, tirava-lhe o chapéu com a espingarda e mijava-lhe no miolo para ver se se apagava, mas não apaga: alastra, entorna-se em labaredas, esfola como maçarico cada toucinho de sombra.
 
Um sol de penedo, sem escrúpulo nem misericórdia, que estala figueiras, estilhaça pias de pedra e faz fervilhar o azeite nas almotolias.
 
Um sol descarado que tudo obriga a abrir: a coxa, o decote, a braguilha.
Um sol que morde as meninges do tutano, rosna no gorgomilo dos galos logo pela manhã e finca a unha do Inferno no chão até o granito se desfazer em morraça, a pedir chuva por esmola.
“A bem da Nação!”, pia a Federação do Turismo e Hotelaria.
“A bem do caralho!”, rosna o Sindicato.
A canícula regurgita tudo o que engoliu: moscas gordas, sorrisos fingidos, guardanapos de papel amarrotados de tanto limpar o suor.
Os corpos parados são altares de moscas, o ar ferve na garganta como sussurros de múmia.
A cada passo, uma língua de lume lambe os tornozelos.
 
Portugal inteiro arregaça as mangas até ao sovaco e faz-se ao negócio: engarrafar este inferno e vendê-lo aos turistas que vêm lamber o sal.
Nos passeios, baldes de zinco, panelas de esmalte, bacias de plástico onde o sol pinga, escorre a jorros, entorna-se em funis de cornijas improvisadas, arrancados dos beirais de casas devolutas.
Nos barracões de lona instalados pela Junta, mulheres de mamas até ao umbigo despejam luz em frascos de compota: “Sol de Bacalhau”, “Sol de Chícharo”...
 
 Homens de boné puído fazem contas na calculadora da mercearia: um litro de Sol Engarrafado vale três quilos de biqueirão seco — mas quem paga o IVA?
 “Que o pague a Rússia!”, alguém berra, cuspindo caroços de azeitona para dentro dos bidões de luz enquanto limpa o beiço à camada adiposa que lhe encobre o escafóide.
 
No meio da praça, um tanque de cimento onde a canalha de joelhos espreme a claridade com os punhos, torce a claridade do domingo até restar só a crosta da sombra.
Os cães, por baixo, rilham os restos da terrinca que até estala ao engolir.
 
 Mais atrás, uma fila de velhos, de serapilheira à cinta, escarafuncha o restolho à cata de fagulhas de sol, migalhas douradas para vender aos cruzeiros que atracam carregados de turistas de pés de Prada e gargantas de Pantagruel, no cais do Pinhão.
 
Nas Caldas de Moledo ainda tresanda o escabeche de enguias da Ferreirinha, misturado com este bafo do Diabo. De quando em quando pinga por lá um francês armado em refinado, de chapéu de palha roto e ceroulas de marca Le Coq Sportif.
 
 — “Bai lá pra dentro, Deolinda, que me fodes o negócio com esse buço!”
 — “Ó Carlos Caralho, no outro dia passou por aqui uma madama francesa.
Veio de Paris lamber sol à colher.
A Deolinda pregou-lhe os olhos nos caroços de azeitona e disse-lhe: Madame, o seu sangue nem ferve, tal é o frio que lhe anda na alma…”
 
Pelas esquinas, o pregão lateja: “Sol fresquinho! Sol engarrafado! Dois euros a golada! Ó Senhor turista, benz’ó Deus!”
 Ganapos de t-shirt aberta até ao umbigo abanam leques de plástico benzidos pela ArreFIFA: “Brisas artesanais — dez cêntimos a baforada!”
 
 Há quem alugue a própria sombra: toldos humanos de braços abertos, pendurados em postes, cobrando por metro quadrado de penumbra.
 
 Outros vendem pacotes de ar reciclado: respiram fundo para dentro de uma bexiga de porco, atam o nó e vendem: “Ar Lusitano! Cheiro de sardinha assada logo pela manhã!”
 — “A sardinha é o único peixe que dorme, Justino! Aprende isso!”
 
O Maserati-Cadillac passa, troveja no empedrado como um trovão de zinco.
Até faz farrafiscas a quimera sobre rodas, um carro que não existe mas devia.
 
O Maserati-Cadillac, espavento de metal, relincha como um cavalo de raça com ferradura de ouro e peito de burro.
Meio italiano, faróis de felpa, meio caixão cromado americano, tão comprido que dobra esquinas antes de lá chegar.
É o furor da direita style, de cotovelo à janela, óculos escuros de aviador.
E se encontra sombra, engole-a de marcha atrás, não vá algum inquilino clandestino armar tenda social e estragar a vista da elite ao brunch.
Passa sem pedir licença, desfaz os toldos, abana os decotes, engole os passeios. Um monstro mecânico de verniz, prenhe de toda a paciência que falta a quem o conduz.
 
O olhos dos passantes, parecem faróis carrancudos, enquanto não se alapam na esplanada da associação a beber Maldivas num copo de mini. É um olhar que lança culpas de uns para os outros, como se fosse cada fio de suor responsabilidade do vizinho, do governo, da sombra roubada, da renda que triplica o calor.
 
 — “Ca filho da puta de calor, Mariana!”
 
Mais ao lado, os solicultores protestam a míngua do ouro engarrafado mas aplaudem as sanções, desde que impeçam a luz de fugir para o cu da Rússia.
 — “Que fique cá! Que se venda a copo no Inverno! Que se verta pelas goelas do Entrudo!”
 — “Fique o caralho! Os russos até se bezuntavam c’o ele, doze milhões de litros por ano! Agora? Bebe-o tu, ó Inácio!”
 
 E batem palmas, imperiais erguidas, enquanto o peixe de vidro sobrevoa as barracas, salpicando escamas de sonho sobre cabeças curtidas a sol e mosca.
 
No fim, o bote de borracha, ventre prenhe de trovoada por estrear, balança no horizonte.
 
 — “Lá dentro não vai alma viva!”, suspira a Agostinha para o poste, enquanto enxuga os olhos à beira da banca.
 
 Uma ventoinha terreca-teca-teca, escangalhada, suspira no beiral a única brisa que resta quando Portugal decide engarrafar o Inferno e vendê-lo, golada a golada, ao riso do turista.
 
Teresa D’Afélio — especialista em má-disposição crónica e delirium veranis