Palavras Bailarinas
As palavras tomaram conta de mim muito cedo, mesmo quando elas faltavam. Quando se diz sol, imaginamos o sol a brilhar. A minha mãe costumava contar que eu fui tardia a falar, mas quando o fiz era perfeita no que dizia. Quem sabe o sol cresceu inteiro, e só depois a palavra sol? Há raízes estranhas em nós. Por vezes, teimosas e inescrutáveis. Acredito que assim aconteceu com o canteiro das palavras. Nos meus tempos de estudante universitária, encontrei intelectuais que pretendiam dizer como se lia, como as palavras eram importantes ou não. Havia o bom e o mau leitor. Eu, que tinha passado a minha jovem vida a ler, encolhia-me num canto, acaso alguma pergunta pairasse. Mas não havia problema.
Naquele grupo só os eleitos eram ouvidos. E eu pensava, porque não pertenço aqui, porque só soube ler como sabia? Sonhos, conhecimento, viagens, cheiros, tantos sabores. E ficava ali, inerte. De quem sou eu filha? É porque sou filha de uma agricultora viúva de um emigrante que partiu cedo de mais?
No entanto, as palavras viviam em mim. Tinha um tio com uma biblioteca invejável. Li Stendhal, Dostoievski e Tolstoi, Emile Zola, Balzac, muitos autores tão demasiado para a minha idade. Tinha uma sede de conhecimento inesgotável. Era membro da Calouste Gulbenkian sobre rodas. Lia o que mais podia. Também os mestres do crime, de que ainda agora sou apreciadora. Eu lia, eu viajava, eu aprendia a música e o sentido das palavras.
Devorava também todos os livros de História de Arte, consultava compulsivamente a enciclopédia. O mundo abria-se nas palavras. Eu acreditava firmemente no expandir dos horizontes. No saber, saber um pouco de tudo e sempre diferente, mas saber.
Algo bom de imediato aconteceu: as boas notas na escola, a intimidade que sentia com certos autores, uma vivência única e de abertura para o mundo.
De volta ao meu grupo de leitores exclusivos, mais tarde, na cidade. Confesso que, na altura, quase acreditei em castas. De quem pode saber, de quem nunca poderá saber. Eram todos tão certinhos, tão aprumados nas suas palavras, em que coabitavam de uma forma perfeita, quase assustadora, com as palavras nas suas coutadas.
Saía destes encontros com a estranha sensação de não saber para onde iria. O que pensar? Onde estou? Que vou fazer? Quem sou eu?
Nas minhas deambulações solitárias pela cidade, fui muitas vezes ouvinte. Invariavelmente, sentada num banco de um jardim, atraía pessoas, os anónimos, que se sentavam junto a mim, e me contavam as suas vidas. Diziam coisas, tantas vezes sem nexo, mas creio que foi aí que comecei a perceber que dizer era também ser. Nunca mais as via, mas introduziram-se na minha mente de forma inexorável. E havia tantos, tantos dizeres espalhados por ali. E eu permanecia naquele estado latente das palavras, naquele ser de realidade, ou imaginação, naquele dizer pouco e significar tanto. Vivia mergulhada no que as palavras me davam.
Tive então um mentor, um relacionamento, em que ele me dava livros para eu ler e sublinhar. Para saber se sabia ler bem. Mal não fazia, mas era uma discípula. Continuei assim. Trouxe-me a ventura de conhecer escritores que entraram em mim para sempre.
Abalaram por completo as minhas convicções. E também deitaram por terra a intelectualidade a que estava sujeita. Porque senti as palavras dentro de mim, criaram mundos sonhados e não sonhados. Mas trouxeram-me finalmente um algo nunca mais esquecido: eu sei, eu sinto! Nunca mais!
As fontes nunca secam, e nem que seja o etéreo musgo a cobrir os nossos passos, sabemos que a água existe. É claro que o relacionamento morreu, e eu a ajudar a fazer a poesia. Sim, com todos os meus desvãos, transmitia, sei-o agora, poesia. Não das palavras, mas o que as palavras entoavam em mim. Porque então era toda pureza, nos sons, nos sentidos e nas palavras.
O tempo passa. Eu começo a escrever coisas. Poemas, algumas recensões críticas.
Amigos dizem-me: publica. Gostamos dos teus poemas.
Publiquei. No dizer de um grande poeta, “uma mulher de um só livro” Um vazio na crítica.
Não esperava outra coisa, acho que não queria coisa alguma. No entanto, um dos poemas tornou-se, por muito tempo, um poema de eleição nas sessões de poesia. Além deste, eu acarinho um punhado de poemas daquele livro. E não há arrependimentos. O livro, uma catarse completa, revisita-me com o poder das palavras que na altura lhes conferi, puras gotas de vida e da mais íntima palavra. E há poemas que voltam sempre para mim, me tocam em diferentes estádios da minha vida. Revejo-me numa espécie de espelho mil e uma vezes. Reconheço-me. Sinto o poder das palavras que escrevi, a revoltura que nelas persiste. Se agora voltasse atrás, reduziria o livro a pouco menos que um livro..ou não. Não seria quem sou.
Não me arrependo, foi um parto difícil e ainda mais difícil amamenta-lo. Ouvir as pessoas dizerem que gostaram, mas....e eu seguro-o no colo com o carinho que se dá a um recém nascido, e que nasce interminantemente.
Pois, as palavras. É disso que falamos.
Algum tempo depois, surge-me um desafiio: dramaturgia a partir de poesia e de outros textos. Eu, que já adorava teatro, sim, posso dar um significado às palavras, dar-lhes um corpo visível, tangível, observável, espelhável!
Foi toda uma experiência conseguir transformar poesia em imagens, prosa sem destinatários em diálogos vivos. O nosso medo era se os autores gostariam desta variação, desta diferente perspectiva das suas obras. Felizmente,um sucesso.
As palavras continuavam a germinar na minha mente. Outro tipo de palavras.
Foi nascendo uma estória. Uma estória de meninos, de seres humanos com sonhos, com dores, com medos. E sobretudo o medo de o dizer. Cada palavra nesse meu conto foi como um pedaço da minha alma, e contudo a eterna infância a dizer as coisas que realmente importam. E o que são as palavras? Também. É o meu texto mais adorado. Volto a ele, vezes sem conta, e construo, de novo, e sem cansaço, a infância sonhada. A minha visão era também pintar esta estória. Nunca foi a lume. E sei, por conhecimento próprio, que muito poucos a entenderiam. Será para mim, sempre um portal para o sonho. Basta-me.
Quando fiquei grávida, falava interiormente com a minha filha. Como quase todas as mães fazem. Mesmo já nascida, inventava canções só para ela, que mudavam conforme o tom da natureza.
Depois de ela nascer, de alguma forma as palavras minguaram em mim. Muitos me perguntam, “então, já não escreves?”.
Não sei se foi a força de outras vidas maiores, mas de algum modo, agora, as palavras amedrontam-me. Ou pior ainda, funcionam como grilhões em círculos inquebráveis que me arrastam para um lugar sem luz. E não encontro a fonte que antes jorrava sem parar.
Quando a minha filha começou a saber escrever, dizia-lhe amiúde: as palavras são bailarinas. Porque ela amava a dança, porque gostava que ela tivesse uma relação com as palavras única, viva, digna da sua maior paixão. Porque as palavras são música, são sentimentos, são sonhos. E é por isso que este meu texto se chama “as palavras bailarinas”.
As palavras tomaram conta de mim muito cedo, mesmo quando elas faltavam. Quando se diz sol, imaginamos o sol a brilhar. A minha mãe costumava contar que eu fui tardia a falar, mas quando o fiz era perfeita no que dizia. Quem sabe o sol cresceu inteiro, e só depois a palavra sol? Há raízes estranhas em nós. Por vezes, teimosas e inescrutáveis. Acredito que assim aconteceu com o canteiro das palavras. Nos meus tempos de estudante universitária, encontrei intelectuais que pretendiam dizer como se lia, como as palavras eram importantes ou não. Havia o bom e o mau leitor. Eu, que tinha passado a minha jovem vida a ler, encolhia-me num canto, acaso alguma pergunta pairasse. Mas não havia problema.
Naquele grupo só os eleitos eram ouvidos. E eu pensava, porque não pertenço aqui, porque só soube ler como sabia? Sonhos, conhecimento, viagens, cheiros, tantos sabores. E ficava ali, inerte. De quem sou eu filha? É porque sou filha de uma agricultora viúva de um emigrante que partiu cedo de mais?
No entanto, as palavras viviam em mim. Tinha um tio com uma biblioteca invejável. Li Stendhal, Dostoievski e Tolstoi, Emile Zola, Balzac, muitos autores tão demasiado para a minha idade. Tinha uma sede de conhecimento inesgotável. Era membro da Calouste Gulbenkian sobre rodas. Lia o que mais podia. Também os mestres do crime, de que ainda agora sou apreciadora. Eu lia, eu viajava, eu aprendia a música e o sentido das palavras.
Devorava também todos os livros de História de Arte, consultava compulsivamente a enciclopédia. O mundo abria-se nas palavras. Eu acreditava firmemente no expandir dos horizontes. No saber, saber um pouco de tudo e sempre diferente, mas saber.
Algo bom de imediato aconteceu: as boas notas na escola, a intimidade que sentia com certos autores, uma vivência única e de abertura para o mundo.
De volta ao meu grupo de leitores exclusivos, mais tarde, na cidade. Confesso que, na altura, quase acreditei em castas. De quem pode saber, de quem nunca poderá saber. Eram todos tão certinhos, tão aprumados nas suas palavras, em que coabitavam de uma forma perfeita, quase assustadora, com as palavras nas suas coutadas.
Saía destes encontros com a estranha sensação de não saber para onde iria. O que pensar? Onde estou? Que vou fazer? Quem sou eu?
Nas minhas deambulações solitárias pela cidade, fui muitas vezes ouvinte. Invariavelmente, sentada num banco de um jardim, atraía pessoas, os anónimos, que se sentavam junto a mim, e me contavam as suas vidas. Diziam coisas, tantas vezes sem nexo, mas creio que foi aí que comecei a perceber que dizer era também ser. Nunca mais as via, mas introduziram-se na minha mente de forma inexorável. E havia tantos, tantos dizeres espalhados por ali. E eu permanecia naquele estado latente das palavras, naquele ser de realidade, ou imaginação, naquele dizer pouco e significar tanto. Vivia mergulhada no que as palavras me davam.
Tive então um mentor, um relacionamento, em que ele me dava livros para eu ler e sublinhar. Para saber se sabia ler bem. Mal não fazia, mas era uma discípula. Continuei assim. Trouxe-me a ventura de conhecer escritores que entraram em mim para sempre.
Abalaram por completo as minhas convicções. E também deitaram por terra a intelectualidade a que estava sujeita. Porque senti as palavras dentro de mim, criaram mundos sonhados e não sonhados. Mas trouxeram-me finalmente um algo nunca mais esquecido: eu sei, eu sinto! Nunca mais!
As fontes nunca secam, e nem que seja o etéreo musgo a cobrir os nossos passos, sabemos que a água existe. É claro que o relacionamento morreu, e eu a ajudar a fazer a poesia. Sim, com todos os meus desvãos, transmitia, sei-o agora, poesia. Não das palavras, mas o que as palavras entoavam em mim. Porque então era toda pureza, nos sons, nos sentidos e nas palavras.
O tempo passa. Eu começo a escrever coisas. Poemas, algumas recensões críticas.
Amigos dizem-me: publica. Gostamos dos teus poemas.
Publiquei. No dizer de um grande poeta, “uma mulher de um só livro” Um vazio na crítica.
Não esperava outra coisa, acho que não queria coisa alguma. No entanto, um dos poemas tornou-se, por muito tempo, um poema de eleição nas sessões de poesia. Além deste, eu acarinho um punhado de poemas daquele livro. E não há arrependimentos. O livro, uma catarse completa, revisita-me com o poder das palavras que na altura lhes conferi, puras gotas de vida e da mais íntima palavra. E há poemas que voltam sempre para mim, me tocam em diferentes estádios da minha vida. Revejo-me numa espécie de espelho mil e uma vezes. Reconheço-me. Sinto o poder das palavras que escrevi, a revoltura que nelas persiste. Se agora voltasse atrás, reduziria o livro a pouco menos que um livro..ou não. Não seria quem sou.
Não me arrependo, foi um parto difícil e ainda mais difícil amamenta-lo. Ouvir as pessoas dizerem que gostaram, mas....e eu seguro-o no colo com o carinho que se dá a um recém nascido, e que nasce interminantemente.
Pois, as palavras. É disso que falamos.
Algum tempo depois, surge-me um desafiio: dramaturgia a partir de poesia e de outros textos. Eu, que já adorava teatro, sim, posso dar um significado às palavras, dar-lhes um corpo visível, tangível, observável, espelhável!
Foi toda uma experiência conseguir transformar poesia em imagens, prosa sem destinatários em diálogos vivos. O nosso medo era se os autores gostariam desta variação, desta diferente perspectiva das suas obras. Felizmente,um sucesso.
As palavras continuavam a germinar na minha mente. Outro tipo de palavras.
Foi nascendo uma estória. Uma estória de meninos, de seres humanos com sonhos, com dores, com medos. E sobretudo o medo de o dizer. Cada palavra nesse meu conto foi como um pedaço da minha alma, e contudo a eterna infância a dizer as coisas que realmente importam. E o que são as palavras? Também. É o meu texto mais adorado. Volto a ele, vezes sem conta, e construo, de novo, e sem cansaço, a infância sonhada. A minha visão era também pintar esta estória. Nunca foi a lume. E sei, por conhecimento próprio, que muito poucos a entenderiam. Será para mim, sempre um portal para o sonho. Basta-me.
Quando fiquei grávida, falava interiormente com a minha filha. Como quase todas as mães fazem. Mesmo já nascida, inventava canções só para ela, que mudavam conforme o tom da natureza.
Depois de ela nascer, de alguma forma as palavras minguaram em mim. Muitos me perguntam, “então, já não escreves?”.
Não sei se foi a força de outras vidas maiores, mas de algum modo, agora, as palavras amedrontam-me. Ou pior ainda, funcionam como grilhões em círculos inquebráveis que me arrastam para um lugar sem luz. E não encontro a fonte que antes jorrava sem parar.
Quando a minha filha começou a saber escrever, dizia-lhe amiúde: as palavras são bailarinas. Porque ela amava a dança, porque gostava que ela tivesse uma relação com as palavras única, viva, digna da sua maior paixão. Porque as palavras são música, são sentimentos, são sonhos. E é por isso que este meu texto se chama “as palavras bailarinas”.
Para a minha filha, o meu grande amor.
Almerinda Alves