04 novembro, 2024

falso-eu de vidro


o falso-eu de vidro
 
um objecto transicional atravessa a atmosfera. ninguém o filma pois não se vê.
- corte de continuidade existencial -
 
eis que um nascituro perene nasce por dentro de um corpo e perene é o seu grito inaudível.
 
grande plano - o trigo da história e a história do trigo.
grande plano - o centeio da história e a história do centeio.
close-up - lucifer amassa o seu pão.
close-up - o corpo de deus / as suas migalhas caem sobre a humanidade.
 
plano aberto - pássaros saídos do peito de uma mulher abrem voo com migalhas no terceiro estômago.
 
plano médio - o super-macho visto de cima lambe a enorme sombra do falso-eu. deseja ser penetrado por si mesmo.
 
plano conjunto - outro falso-eu com lupas de olho incorpora o idealizado.
 
ambientalismo
a mesa de madeira arranhada por felinos, tem só uma toalha branca manchada de vinho, porém ambos vêem sobre ela distintas composições.
 
um vê: o corpo do objecto idealizado cordeado como um cordeiro de sacrifício disposto a ser sangrado em benefício do deus-fal(s)o.
 
outro vê: o objecto idealizado deslumbrado pela saciedade, um filho poético com asas, uma sandália dourada ao lado de uma ânfora de água fresca,
 
as uvas do senhor-todo-poderoso a quem no lugar da pedra ao peito brotou um vigoroso manancial de amor.
 
porém a mesa tem lavrados os veios do passado, a violência cortante e uma toalha branca e manchada. o (ab)uso permanente.
 
dão-se silêncios punitivos.
aves escurecidas pelas nuvens de trovoada anunciam uma forte chuvada.
avista-se ao longe o funeral do ego-genuíno de uma criança.
 
narciso reconhece-se e fica confuso pois crê-se vivo.
um espelho tomba e fragmenta-se em inúmeros vidros.
 
dali nunca mais sai mas deriva caleidoscópico pelo seu desenho de mundo.
os fragmentos alternam, aparecem e desaparecem.
 
 
dependendo da situação apresenta uma face.
narciso não quer que se veja nenhuma face arranhada.
o mínimo encontrão parte o vidro.
 
passadas duas gestações de tempo encontram-se com o guião aprovado por escrito.
 
ambos se reservam à surpreendente defesa.
ele crê que ela está dominada pela sua eficácia vocabular.
ela espera-o com o quimono negro de seda que ele delicadamente impôs.
 
ela olha-o e vê-o tão vulnerável quanto a máscara da sua crueldade.
mostra-lhe um pequeno embrulho de veludo negro atado com uma fita de veludo vermelho.
- antes de saíres, leva isto. é uma oferenda.
se saiu feliz não o vamos revelar agora.
 
agora só revelamos que abriu o embrulho a caminho de casa e dentro dele estava uma pequenina toalha branca manchada de vinho que ela bebera enquanto comeu uma parte do pão que ali ia em migalhas.
um pequeno bilhete dizia: "devolvo-te tudo quanto me deste."
 
 
Fátima Vale