Monólogo 9: O Eu e o Outro
Voz:
Se olho para ti, o que vejo? Será que te vejo mesmo ou apenas um reflexo de mim, projectado no espaço entre os nossos olhos? O Outro está a desaparecer. Dizem que é culpa do tempo em que vivemos: tudo é espelho. Tudo devolve apenas a nossa própria imagem, distorcida, achatada.
(pausa breve)
O Outro é o que nos dá profundidade, disseram. Sem ele, tornamos-nos rasos, sem sombra, sem rasto. Sentes isso? Esta solidão que grita no fundo de cada palavra que pronunciamos. O Outro já não está para nos ouvir. Há apenas o vazio onde ecoa o nosso próprio som.
(aproxima-se, em tom provocador)
E quando tu me olhas, o que vês? Sou eu ou sou apenas mais uma extensão tua? Vivemos num tempo em que o Outro foi dissolvido pelo excesso. O excesso de selfies, de telas, de vozes que não se calam. E no excesso, perdemos a capacidade de ver. Ver realmente.
(sussurra)
Mas eu pergunto: o que acontece quando o Eu é tudo o que resta? Isso é liberdade ou é uma prisão?
(voz crescente, quase um grito)
A falta do Outro devora-nos. Transforma-nos em caricaturas, sempre iguais, sempre previsíveis. Sem o Outro, não há conflito. E sem conflito, não há criação. É por isso que estamos parados. É por isso que tudo parece tão banal. Porque só o Outro nos desafia a ser mais.
(pausa longa, tom melancólico)
Mas talvez o Outro ainda esteja aqui, escondido nalgum lugar onde nos esquecemos de procurar. Talvez esteja nas sombras, à espera que finalmente aprendamos a ver além de nós mesmos.
(voz firme, pensativa)
E, no entanto, por que continuo refém de mim? Não há grades, as paredes invisíveis erguem-se ao meu redor. Esta prisão não foi construída por acaso. Foi desenhada pelo mesmo sistema que nos promete liberdade enquanto nos aprisiona em ciclos de repetição.
(aproxima-se de alguém)
Dizem que temos escolhas, mas como escolher quando todas as possibilidades já foram reduzidas a uma lista finita, escrita por mãos invisíveis? Estamos isolados em bolhas, separados de tudo o que nos poderia expandir. E assim, o Eu torna-se um cárcere, um eco interminável de si mesmo.
(com intensidade crescente)
Pergunto: quem me raptou? Fui eu mesma ou foi o mundo? Este mundo que nos cerca de distrações, de promessas de felicidade instantânea, enquanto nos despoja da profundidade? O Outro é a minha salvação, mas o sistema apagou-o, tornando-o irreconhecível.
(pausa, tom baixo e cortante)
E sem o Outro, o que resta? O Eu. Apenas o Eu. Uma ilusão.
Fátima Vale