17 fevereiro, 2025

a_gregar


DO INEFÁVEL E OS ARQUÉTIPOS EM RUÍNAS
(Com vestígios do alfabeto órfico)
 
 
I. AION (O TEMPO QUE NÃO CABE NA BOCA)
ἄπειρον —  
O inefável é um rio  
que os lábios não atravessam sem naufrágio.  
Na margem esquerda: Homero tece trevas em hexâmetros.  
Na direita: um algoritmo tenta traduzir o vento.  
Entre ambas,  
o silêncio cresce como hera nas fendas do verbo.  
 
Pergunta ao aedo:  
Como nomear o que não tem espelho?
Resposta:  
Cuspindo sílabas de âmbar e fogo até que os deuses  
reconheçam a sua própria nudez.
 
  
II. SIGÉ (O SILÊNCIO QUE HERDA A PALAVRA)
A palavra inefável não é a que se cala —  
é a que habita  
o intervalo entre o ἄλφα e o ωμέγα,  
onde as letras são sementes de granito  
e o alfabeto, um cemitério de astros.  
 
Os gregos sabiam:  
o indizível é um deus sem altar,  
uma estátua quebrada cujos dedos  
ainda apontam para o ὕψιποντα —  
o “lugar alto” onde o mar e o mito  
se confundem com o branco da página.  
 
  
III. SOMA (O CORPO COMO EPIGRAMA FUGIDIO)  
ἔγραφψα ψάμμος — escrevi na areia.  
O mar apagou.  
O corpo, tábuas de argila sob o sol:  
a escrita é sudorese, tremor, cicatriz.  
Heráclito ri no fundo do poço:  
Como traduzir o rio que és  
se até o teu próprio nome escorre  
entre os dedos da língua?
 
 
IV. MNEMOSYNE (A MEMÓRIA QUE PARIU AS MUSAS)
A deusa não guarda fatos —  
guarda o cheiro do incenso queimado  
antes da primeira palavra.  
No arquivo do inefável:  
— Um verso de Safo engasgado no gargalo de uma ânfora.  
— O suspiro de Aquiles ao ver o mar pela última vez.  
— O peso do mel na língua de Platão quando mentiu  
sobre o amor.
 
V. ARRHETOS (O INEFÁVEL COMO ÚLTIMO TERRITÓRIO)
Aqui jaz o que a fala não ousa:  
ἄρρητος —  
terra sem mapa onde até os deuses  
entram descalços.  
Só os poetas, esses contrabandistas do sublime,  
ousam pisá-la:  
roubam brasas do Olimpo,  
vendem-nas como versos no mercado das palavras.  
 
 
Fátima Vale