DO INEFÁVEL E OS ARQUÉTIPOS EM RUÍNAS
(Com vestígios do alfabeto órfico)
I. AION (O TEMPO QUE NÃO CABE NA BOCA)
ἄπειρον —
O inefável é um rio
que os lábios não atravessam sem naufrágio.
Na margem esquerda: Homero tece trevas em hexâmetros.
Na direita: um algoritmo tenta traduzir o vento.
Entre ambas,
o silêncio cresce como hera nas fendas do verbo.
Pergunta ao aedo:
Como nomear o que não tem espelho?
Resposta:
Cuspindo sílabas de âmbar e fogo até que os deuses
reconheçam a sua própria nudez.
II. SIGÉ (O SILÊNCIO QUE HERDA A PALAVRA)
A palavra inefável não é a que se cala —
é a que habita
o intervalo entre o ἄλφα e o ωμέγα,
onde as letras são sementes de granito
e o alfabeto, um cemitério de astros.
Os gregos sabiam:
o indizível é um deus sem altar,
uma estátua quebrada cujos dedos
ainda apontam para o ὕψιποντα —
o “lugar alto” onde o mar e o mito
se confundem com o branco da página.
III. SOMA (O CORPO COMO EPIGRAMA FUGIDIO)
ἔγραφψα ψάμμος — escrevi na areia.
O mar apagou.
O corpo, tábuas de argila sob o sol:
a escrita é sudorese, tremor, cicatriz.
Heráclito ri no fundo do poço:
Como traduzir o rio que és
se até o teu próprio nome escorre
entre os dedos da língua?
IV. MNEMOSYNE (A MEMÓRIA QUE PARIU AS MUSAS)
A deusa não guarda fatos —
guarda o cheiro do incenso queimado
antes da primeira palavra.
No arquivo do inefável:
— Um verso de Safo engasgado no gargalo de uma ânfora.
— O suspiro de Aquiles ao ver o mar pela última vez.
— O peso do mel na língua de Platão quando mentiu
sobre o amor.
V. ARRHETOS (O INEFÁVEL COMO ÚLTIMO TERRITÓRIO)
Aqui jaz o que a fala não ousa:
ἄρρητος —
terra sem mapa onde até os deuses
entram descalços.
Só os poetas, esses contrabandistas do sublime,
ousam pisá-la:
roubam brasas do Olimpo,
vendem-nas como versos no mercado das palavras.
Fátima Vale
(Com vestígios do alfabeto órfico)
I. AION (O TEMPO QUE NÃO CABE NA BOCA)
ἄπειρον —
O inefável é um rio
que os lábios não atravessam sem naufrágio.
Na margem esquerda: Homero tece trevas em hexâmetros.
Na direita: um algoritmo tenta traduzir o vento.
Entre ambas,
o silêncio cresce como hera nas fendas do verbo.
Pergunta ao aedo:
Como nomear o que não tem espelho?
Resposta:
Cuspindo sílabas de âmbar e fogo até que os deuses
reconheçam a sua própria nudez.
II. SIGÉ (O SILÊNCIO QUE HERDA A PALAVRA)
A palavra inefável não é a que se cala —
é a que habita
o intervalo entre o ἄλφα e o ωμέγα,
onde as letras são sementes de granito
e o alfabeto, um cemitério de astros.
Os gregos sabiam:
o indizível é um deus sem altar,
uma estátua quebrada cujos dedos
ainda apontam para o ὕψιποντα —
o “lugar alto” onde o mar e o mito
se confundem com o branco da página.
III. SOMA (O CORPO COMO EPIGRAMA FUGIDIO)
ἔγραφψα ψάμμος — escrevi na areia.
O mar apagou.
O corpo, tábuas de argila sob o sol:
a escrita é sudorese, tremor, cicatriz.
Heráclito ri no fundo do poço:
Como traduzir o rio que és
se até o teu próprio nome escorre
entre os dedos da língua?
IV. MNEMOSYNE (A MEMÓRIA QUE PARIU AS MUSAS)
A deusa não guarda fatos —
guarda o cheiro do incenso queimado
antes da primeira palavra.
No arquivo do inefável:
— Um verso de Safo engasgado no gargalo de uma ânfora.
— O suspiro de Aquiles ao ver o mar pela última vez.
— O peso do mel na língua de Platão quando mentiu
sobre o amor.
V. ARRHETOS (O INEFÁVEL COMO ÚLTIMO TERRITÓRIO)
Aqui jaz o que a fala não ousa:
ἄρρητος —
terra sem mapa onde até os deuses
entram descalços.
Só os poetas, esses contrabandistas do sublime,
ousam pisá-la:
roubam brasas do Olimpo,
vendem-nas como versos no mercado das palavras.
Fátima Vale