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Eis o verso que se rasga:
um alfabeto de sombras onde mãe e irmã
são sinónimos na boca do tempo.
Escrevo-te em negativo — a ausência
- única tinta que não seca.
Cada palavra (aqui) é um leito desfeito,
um útero de perguntas sem réplica:
"Quando vem a mãe?"
(A poesia é a criança que nasce
e desnasce no mesmo suspiro?)
Os teus olhos verdes,
traduzem o mundo em fragmentos de memória.
Cuido de ti como quem decifra
um manuscrito de fogo —
o papel consome-se, a chama permanece.
Sou a criatura que inventa
o mito da própria origem:
o teu esquecimento é a minha génese,
a tua fúria passada, um verso apagado.
O sublime habita
na cicatriz.
Tu, que agora regressas ao silêncio primordial,
ensinas-me a ler o avesso da luz:
o poema é o abismo que nos sustenta
quando o chão se dissolve.
Somos irmãs de um tempo fantasma,
gémeas de um parto sem fim.
Desnascer é a única forma de nascimento
que o verso concede —
e nesse desamparo oblíquo,
entre a carne e o símbolo,
o sublime revela-se:
um Deus sem rosto
escreve-nos em fogo frio.
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O poema é a casa onde mãe e filha
são a mesma porta giratória.
Entramos.
Saímos.
Ninguém sabe quem é o dístico no horizonte.
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Fátima Vale