10 março, 2025

O AVESSO DA LUZ


 
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Eis o verso que se rasga:  
um alfabeto de sombras onde mãe e irmã
são sinónimos na boca do tempo.  
Escrevo-te em negativo — a ausência  
- única tinta que não seca.  
 
Cada palavra (aqui) é um leito desfeito,  
um útero de perguntas sem réplica:  
"Quando vem a mãe?"
(A poesia é a criança que nasce  
e desnasce no mesmo suspiro?)  
 
Os teus olhos verdes,  
traduzem o mundo em fragmentos de memória.  
Cuido de ti como quem decifra  
um manuscrito de fogo —  
o papel consome-se, a chama permanece.  
 
Sou a criatura que inventa  
o mito da própria origem:  
o teu esquecimento é a minha génese,  
a tua fúria passada, um verso apagado.
 
O sublime habita  
na cicatriz.
 
Tu, que agora regressas ao silêncio primordial,  
ensinas-me a ler o avesso da luz:  
o poema é o abismo que nos sustenta  
quando o chão se dissolve.  
Somos irmãs de um tempo fantasma,  
gémeas de um parto sem fim.  
 
Desnascer é a única forma de nascimento  
que o verso concede —  
e nesse desamparo oblíquo,  
entre a carne e o símbolo,  
o sublime revela-se:  
um Deus sem rosto
escreve-nos em fogo frio.
 
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O poema é a casa onde mãe e filha  
são a mesma porta giratória.  
Entramos.  
Saímos.  
Ninguém sabe quem é o dístico no horizonte.  
 
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Fátima Vale