05 março, 2025

"POR EXEMPLO"


I. NEUROPLASTIA
  
O teu cérebro refaz rotas  
como um rio desenha deltas na sombra.  
"Por exemplo" — repete o mantra truncado,  
sílaba presa entre sinapses,  
frase engasgada na garganta.  
 
Sorris.  
A tua boca, página em branco,  
onde leio o que não dizes.  
O verbo tornou-se aurora suspensa,  
enquanto a tua mão escreve  
aliterações no ar —  
traços invisíveis de um alfabeto  
que só o silêncio decifra.  
 
II. AFASIA
 
Tento traduzir o teu fado sem letra:  
cada gesto, um verso de braille;  
cada piscar, uma estrofe.  
Os doutores nomeiam lesões  
— área de Broca, hemorragia —  
soneto desmontado,  
perdido na ressonância.  
 
"Por exemplo", insistes,  
e a frase aborta  
como um peixe que salta da água para a água.  
Na tua língua contida,  
até o silêncio tem sotaque.  
Sorris de novo:    
versão mínima de nós.  
 
III. SINESTESIA DO NÃO-DITO  
 
Aprendemos a falar por camadas de ausência —  
o teu andar arrastado desenha dísticos no chão,  
tropeços que são epifanias.  
Quando as palavras fogem,  
inventamos fonemas de luz:  
as tuas mãos na minha  
são um verso futurista,  
performance de sangue e espera.  
 
Na fisioterapia das almas,  
reaprendemos o óbvio:  
o amor não precisa de sujeito.  
"Por exemplo"...
 
IV. TRANSPALAVRAÇÃO  
 
Dialecto pré-verbo  
que fala em raízes e constelações.  
Os nossos corpos —  
glossários paralelos  
traduzem o indizível  
em códigos de ternura.
 
Quando a noite aperta  
e as palavras se recusam a nascer,  
ouço a tua voz intacta  
poesia pura, pai,  
escrita em árvores espelhadas  
onde te reconheço inteiro  
na fratura que nos une.  
 
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Fátima Vale