I. NEUROPLASTIA
O teu cérebro refaz rotas
como um rio desenha deltas na sombra.
"Por exemplo" — repete o mantra truncado,
sílaba presa entre sinapses,
frase engasgada na garganta.
Sorris.
A tua boca, página em branco,
onde leio o que não dizes.
O verbo tornou-se aurora suspensa,
enquanto a tua mão escreve
aliterações no ar —
traços invisíveis de um alfabeto
que só o silêncio decifra.
II. AFASIA
Tento traduzir o teu fado sem letra:
cada gesto, um verso de braille;
cada piscar, uma estrofe.
Os doutores nomeiam lesões
— área de Broca, hemorragia —
soneto desmontado,
perdido na ressonância.
"Por exemplo", insistes,
e a frase aborta
como um peixe que salta da água para a água.
Na tua língua contida,
até o silêncio tem sotaque.
Sorris de novo:
versão mínima de nós.
III. SINESTESIA DO NÃO-DITO
Aprendemos a falar por camadas de ausência —
o teu andar arrastado desenha dísticos no chão,
tropeços que são epifanias.
Quando as palavras fogem,
inventamos fonemas de luz:
as tuas mãos na minha
são um verso futurista,
performance de sangue e espera.
Na fisioterapia das almas,
reaprendemos o óbvio:
o amor não precisa de sujeito.
"Por exemplo"...
IV. TRANSPALAVRAÇÃO
Dialecto pré-verbo
que fala em raízes e constelações.
Os nossos corpos —
glossários paralelos
traduzem o indizível
em códigos de ternura.
Quando a noite aperta
e as palavras se recusam a nascer,
ouço a tua voz intacta
poesia pura, pai,
escrita em árvores espelhadas
onde te reconheço inteiro
na fratura que nos une.
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Fátima Vale