16 abril, 2025

Requerimento para Existir

 
Requerimento para Existir
 
Ou Como Ensinar um Camaleão a Passar por Fotocópia Autenticada  
 
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O formulário despontou em mim um eczema.  
Primeiro uma comichão tímida no subsídio,  
depois pústulas no orçamento,  
até que acordei coberta de burocracia metastática.  
 
No campo "Intenção", escrevi "existir".  
Erro. O sistema não reconhece verbos sem carimbo.  
Reformulei para: "Requerimento para ocupação precária do ar que respiro".  
Aceite com ressalva.  
(Sugestão da funcionária: "Reduza a subjectividade, aumente a conformidade".)  
 
As testemunhas falharam a audição.  
A primeira foi eliminada por excesso de humanidade.  
A segunda esqueceu-se do número do documento de identidade.  
A terceira ficou presa no paradoxo de um formulário  
onde o tempo se dobra sobre si mesmo.  
 
Resultado: indeferido por excesso de identidade.  
 
Ensino-me a sorrir sem tremer:  
— Levantar a sobrancelha, dobrar a espinha, carimbar o espírito.  
A funcionária aplaude a minha tentativa  
e recusa o meu pedido com entusiasmo.  
 
Despertei metamorfoseada em requerente sem rosto.  
No fundo da sala, um vulto assina sem mãos.  
Kafka assente do outro lado do balcão,  
preenche o mesmo formulário há cem anos.  
 
Meses depois, recebo uma resposta escrita em caligrafia ilegível:  
"O seu pedido foi arquivado na pasta 'Erro Cognitivo'.  
Sugerimos actualizar a sua identidade para um formato mais compatível.  
Caso persista na ilusão da autonomia, consulte um notário ou um padre.  
(P.S.: A sua sombra foi processada como clandestina.  
Favor apresentar comprovativo de existência alternativa.)"
 
Ora phoda-se!
 
Enquanto isso, no quintal:  
remexo a terra, desfaço torrões com as mãos,  
e semeio alfaces, meloas e nabiças.  
Sem comprovativo de intenção, sem assinatura reconhecida.  
 
Não sei se nascerão, mas ao menos,  
não precisarão de despacho favorável para brotar.
 
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Fátima Vale