16 maio, 2025

Capitulismo


1. O Jardineiro-Chefe não Conhece a Lama

O dirigente maior destes jardins veste fato claro e usa luvas que nunca tocaram terra. Não distingue uma semente de um grão de poeira — mas tem planos plurianuais para a “florestação participativa do tecido comunitário”. Gosta de relatórios bem diagramados. O mundo, para ele, é um powerpoint com transições suaves.

Debaixo da sua autoridade, plantam-se metas. Cultivam-se indicadores. Rega-se com fundos estruturais. Mas não se ouve a chuva a cair. Porque ali dentro não chove. Nunca.

 

2. As Plantas não Falam com as Pessoas

Nos corredores dos serviços, há vasos com plantas que já deviam ter morrido. Mas continuam ali, como os funcionários que esperam uma reforma que tarda, ou um contrato que nunca vem. Algumas têm nome: “Excelência”, “Despacho Favorável”, “Gabinete de Projectos”.

São plantas decorativas. Como as ideias que se anunciam nas conferências. Como os apoios que não chegam. Como os projectos-piloto que nunca aprendem a andar.

 

3. Quando a Terra não Encontra o Corpo

A burocracia é um jardim invertido. As raízes estão no ar, e o chão é feito de negação. Lá fora, há gente que rega com suor e paciência. Que planta esperança e colhe indiferença.

Mas a burocracia não reconhece o corpo. É linguagem que se autojustifica. É máquina que gira para dentro. É um organismo autofágico onde os processos valem mais do que o que processam.

 

Epílogo: A Flor que Brota na Fenda

Um dia, por distração ou milagre, alguém deixa a porta aberta. Uma criança entra com um ramo de ervas daninhas — colhidas no pátio da escola, junto ao contentor do lixo.

Os técnicos olham, chocados. Aquilo não está no regulamento. Aquilo não foi submetido à apreciação prévia.

Mas a flor cheira. E por um instante, o jardim suspenso hesita. Treme. Como se soubesse que, lá fora, há vida a crescer sem plano estratégico.

E quando o perfume de uma flor real perturba o equilíbrio do excel, o jardim — por breves segundos — recorda que a vida não se arquiva. Mas logo alguém fecha a porta. E volta tudo ao seu lugar suspenso.

Assim se encerra mais um relatório deste sistema em expansão: o Capitulismo. 


Fátima Vale