21 julho, 2025

Assim respira o que não tem nome


Autorretrato de uma sombra


Assim respira o que não tem nome,
nascendo dentro de tudo.
 
No frio da lâmina que roça a pele do dia,
no tilintar das palavras que se soltam da garganta da casa,
no sopro que se eleva do bico das aves
e pousa na dobra do telhado.
 
Um instinto de claridade que não se explica,
que se inventa a cada manhã,
como quem traça um mapa do invisível
na pele rugosa do mundo.
 
Uma invenção de sentido dentro do absurdo.
Escrever: gesto primevo,
traduzir o caos em um alfabeto urgente,
transformar silêncio em canto,
horror em epifania de ternura.
 
A ideia absorve a violência do mundo,
tece nela um manto de vigília:
o sangue que ainda corre nas veias
traz o sal amargo dos genocídios,
rostos de crianças dissolvidos em notícia,
mas guarda, no fundo,
um sopro intacto de claridade,
um lume secreto que não se deixa soterrar.
 
E, no entanto, persiste
uma lucidez que murmura amor
como cura do irremediável,
como quem encosta o cansaço num ombro,
como quem devolve à noite
um lume brando de permanência.
 
A palavra revolve-se dentro de si,
torna-se ponte frágil entre o chão e o ar,
entre o que sangra e o que floresce,
onde o pensamento, exausto, repousa.
 
Quem somos neste ponto de fuga?
De onde vem esta voz submersa
que recusa narrar o fim,
e na penumbra ainda fia,
fio a fio, um alfabeto de sopros,
um idioma de permanência?
 
E, todavia, a casa respira,
cansada de abrigar espectros e vigílias,
de ser trincheira e altar ao mesmo tempo.
E nela cabe ainda um lume aceso,
um rumor de abrigo,
uma febre mansa que atravessa a noite.
 
Escutas o coração do tempo?
Este tambor brando do agora,
este sopro que roça a pele
como quem embala sem nada pedir,
esse convite ao gesto essencial:
amar, mesmo sabendo da morte,
criar, mesmo sabendo do caos?
 
Assim respira o que não tem nome,
reinventando-se em cada silêncio,
um olhar limpo que rompe a crosta do mundo,
uma raiz que fende o peito do asfalto,
um sopro de luz em carne viva,
um clarão que descansa na dobra do peito,
e por um instante, o fogo é o abrigo,
a palavra, o ombro do recomeço.
 
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Fátima Vale