sentada no silêncio
Mil mundos eu habito, mil mundos habitam em mim. Cheia e simultaneamente vazia. Céptica na minha jornada. Agastada. Rarefeita.
Um lugar demasiado iluminado. Ofuscante. Sinuoso nas parcas sombras em que me protejo. Do encadeamento que me cega restam sinais ténues e intermitentes. E um espaço de liberdade lunar. O bastante.
A contornar o segredo acontecido: o imprevisto das palavras sentadas no silêncio.
gravitação
És o meu chão, embora não saibas que eu não tenho chão.
És a minha fúria, que eu tão bem conheci, e remeti para um lugar sem destino.
És o meu pão. O que o Diabo amassou e o que as mãos de Deus nos concedeu.
A linha que nos une é inquebrantável, frágil e tempestuosa. Invoco o silêncio e a brandura, numa tempestade sem trovão. Os relâmpagos lembram-me a minha pequena e aérea mas pesada presença, com o rosário a desfiar lembranças ternas, raios de luz, e também as lágrimas, os dentes apertados pela solidão, os dias perdidos em coisas vãs.
E, contudo, o meu amor, seguro e pedregoso, quase uma vocação, é tecido por uma linha invisível de aço que nos liga à terra, e aos nossos frutos.
Um sonho desejado por mim, para ti uma iniciação, uma viagem pelas estrelas, um imprevisível furacão.
E eu…gravito.
esta noite
Esta noite, galguei literalmente todos os meus montes interiores, saltei os portões
trancados, cresci e renasci na água incontáveis vezes.
Há noites assim. Armadas até aos dentes nos sonhos que te obrigam a olhar. E ver. E ainda
assim continuas sem saber qual cor escolher para a tua parede onde se encosta essa
cama. Essa, onde viajas e descansas dos dias que não contam.
poderia
Poderia arrastar o teu nome pelas ruas. Seria um orgulho, uma bênção.
Mas as ruas têm demasiados nomes, um desenho demasiado longitudinal, com símbolos desmaiados de sentido.
Prefiro semear-te por entre as pedras da calçada, com a raiz viva e a seiva a palpitar.
Os nomes são perigosos, porque são incólumes. Quero recordar-te nos teus incertos e gloriosos passos, onde brotam as dádivas, as cores e os sons de outros, completando-te.
Talvez um humilde destino te deseje, com uma aura de anjo sempre renascido. Sem nome.
Mas sei-o. É a ti que celebram os andantes, piano e pianíssimo, por vezes staccato até ao delírio, fortíssimo com modesta contenção.
Todos saberão, num coro de vozes encadeadas.
Vives do humilde húmus para alcançar o voo de quem carrega o sol no ombro e o azul no coração.
Verão.
loucura
A escuridão é permeada por uma luz ténue, de assentimento. Não há leveza que resista nessa luz branca e cortante. As linhas são como espadas, os espaços estanques e vazios. A alma retira-se num susto, vagueia na penumbra amena e deixa que uma ou outra cor a abrace, em modo de resistência.
Aninha-se num canto. Embalada pelas trevas, é agora uma estrela interior, intermitente.
Folheia um livro quase esquecido e encontra a frase que procurava.
“Engulo a loucura porque ela me alucina calmamente”
Calmamente, deita-se na cama ainda branca, e adormece.
cacos
Há cacos de vidro no parapeito da janela. A luz estilhaçada alumia o quarto sombrio. Ela esconde-se num canto seguro, defendendo-se dos cortes. Os pés doem-lhe. Tinha aberto a pele ao tentar amaciar o caminho feito de enganos. A cabeça pesa-lhe, como sempre, e resolve entorpecer as teias do pensamento que ela sabe estarem armadilhadas.
No outro canto do quarto um espectro olha-a com atenção, agora redobrada por causa da sua tentativa de fuga, evasão ou invasão, dependendo de quem a habita por dentro. Não há muito espaço de manobra. E ela sabe.
Ressentida, pega num lápis e desenha um mapa, um labirinto secreto, sem saída aparente. Empenha-se neste projecto, cada traço é meticuloso e vago o bastante para iludir a mão. A mesma mão com que muitos anos antes tinha gravado um mapa da sua vida. Foi assim que voltou ao quarto, seguindo o lápis que pintou o seu destino. Os sombreados eram tantos que o caminho principal se esvaneceu. Perdeu-se na floresta encantada que ocupava os seus sonhos. Afogou-se no mar que tanto amava. Seguiu a senda que a levaria a um abismo permanente e inescrutável. Colhia e oferecia flores com a limpidez e a inocência de quem não tem nada a perder.
Agora pergunta-se como foi parar ali, apesar de a razão ter já apresentado todos os seus argumentos. Acomoda-se, assim parece. Sabe que está viva através das dores. Quando duvida, fica grata pela lembrança. Tenta esvaziar a mente, alcançar a leveza de que tanta gente fala, amortecer as agulhas que a perfuram com toda a consistência da sua vida. Está a desaprender de andar, falar com sentido, sonhar ou até desejar o que quer que seja. Não quer pena e a compreensão é impossível. Por isso busca no vazio um interlocutor que a valide no seu exíguo espaço, a crescer ramificado em troços de raízes espalhadas aleatoriamente pela sua galáxia.
Afinal procura a loucura, o único sítio onde o refúgio é possível, o único brilho que a poderá aquecer, e de vez em quando, libertar o seu pó de estrelas a quem verdadeiramente amou. O termo no passado é propositado. Já está longe demais para que o presente aconteça. Tudo é um balão enorme onde a magia é guardada com zelo e paciência. Só existe quando é decidido que algo aconteça.
Quando a vida o exige. Sempre que as cores mudem de lugar. Ou uma luz se apague.
Ouve murmúrios à sua volta. Mas não sabe se são realmente murmúrios ou ecos das rezas que ela inventa. Sempre alerta, continua a construir o seu labirinto
Almerinda Alves