03 setembro, 2025

herbário da infâmia

 
HERBÁRIO DA INFÂMIA
 
Quantas crianças mutiladas são precisas
para que reconheçam a raiz apodrecida da terra?
 
Quantos corpos soterrados na areia
para que a palavra genocídio floresça,
tardia, entre papoulas despedaçadas?
 
Quantas bocas secas, quantos olhos sem pálpebras
são precisos para que um governo
atinja a seiva da verdade?
 
Quantos troncos cortados pela metade,
quantos ramos sem folhas,
quantos frutos abortados da árvore da noite,
antes que a legalidade da morte
seja chamada pelo nome?
 
Quantas vezes mais o espinho perfurará a pele?
Quantas vezes mais o girassol será decapitado?
 
Cada pétala caída é um nome,
um corpo,
uma criança.
 
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O COPO DE BARRO
 
Uma mãe guarda num copo de barro
o último gole de infância.
Uma claridade trémula,
um pedaço de aurora que se esqueceu no fundo da noite.
 
A mãe dá-o a beber ao filho
como quem entrega uma estrela,
um lume que não aquece, mas ilumina o instante.
 
O menino bebe devagar,
e nos seus lábios pequenos
arde a memória da seiva,
a eternidade breve de um fruto.
 
E quando o filho adormece,
a mãe sopra no vazio do copo
para chamar o vento,
esperando que o pó da estrela
se misture com a poeira da terra,
e que dessa mistura nasça um caminho
para o amanhã.
 

Fátima Vale