HERBÁRIO DA INFÂMIA
Quantas crianças mutiladas são precisas
para que reconheçam a raiz apodrecida da terra?
Quantos corpos soterrados na areia
para que a palavra genocídio floresça,
tardia, entre papoulas despedaçadas?
Quantas bocas secas, quantos olhos sem pálpebras
são precisos para que um governo
atinja a seiva da verdade?
Quantos troncos cortados pela metade,
quantos ramos sem folhas,
quantos frutos abortados da árvore da noite,
antes que a legalidade da morte
seja chamada pelo nome?
Quantas vezes mais o espinho perfurará a pele?
Quantas vezes mais o girassol será decapitado?
Cada pétala caída é um nome,
um corpo,
uma criança.
°
°
O COPO DE BARRO
Uma mãe guarda num copo de barro
o último gole de infância.
Uma claridade trémula,
um pedaço de aurora que se esqueceu no fundo da noite.
A mãe dá-o a beber ao filho
como quem entrega uma estrela,
um lume que não aquece, mas ilumina o instante.
O menino bebe devagar,
e nos seus lábios pequenos
arde a memória da seiva,
a eternidade breve de um fruto.
E quando o filho adormece,
a mãe sopra no vazio do copo
para chamar o vento,
esperando que o pó da estrela
se misture com a poeira da terra,
e que dessa mistura nasça um caminho
para o amanhã.
Fátima Vale