entre recibos e chaves,
e fecha-se a porta a sete chaves de vento.
Tá a ver?
vendemos os joelhos em Agosto,
alugamos a coluna vertebral em Abril,
e os pulsos — bem! — têm donos diferentes.
Cada um anda com o seu andamento interno,
um coração descompassado a bater
contra as paredes do relógio biológico.
Agora só para o ano, diz a voz
que habita o telefone em chamada não atendida.
O “para o ano” é um país estrangeiro
onde os passaportes são feitos de papel higiénico
— fino, desmanchável, urgente.
Plantamos minutos em vasos demasiado pequenos,
colhemos segundos raquíticos.
É a agricultura de subsistência do tempo:
minifúndios temporais cercados
por arames farpados de compromisso.
Surreal? Olha:
o autocarro da manhã
passa à tarde com os passageiros do futuro.
Tudo é adjacente, nada coincide.
Cada um com o seu ritmo,
o seu pequeno latifúndio
de ansiedade a circular em veículo próprio.
E no centro da rotunda, parada,
a estátua de um deus menor segura
um cronómetro desmontado.
Tá a ver?
Agora mete-se o Natal outra vez,
e o ano que vem será um envelope
selado com cera de ouvidos moucos.
Entrega-se na próxima esquina de um tal talvez.
A política do adiamento: governamos
os restos de festa, os minutos de tolerância,
os pedaços de tempo que sobram
quando todos os relógios do reino
decidem fugir pelo ralo
numa coreografia de ponteiros.
E o poema, este poema,
é um mapa impossível
desse território esfacelado.
Lê-se de trás para a frente
e de lado, no intervalo
em que a água ferve para o café.
Tá a ver?
Agora só para o ano.
Se o ano couber na ranhura
da consciência colectiva.
Se não for engolido
pelo buraco negro do “depois logo se vê”.
Este poema não tenta organizar o tempo, limita-se a expor o seu mau funcionamento.
O relógio avariado é O método. Marca atrasos, adiamentos, desvios e pequenas fraudes quotidianas com uma precisão quase científica.
Nada está fora do sítio: é o sítio que se fragmenta. O calendário surge como uma anatomia precária, a política como gestão de sobras, e o futuro como uma promessa embrulhada em material descartável.
Se o texto parece surreal, é porque insiste em ser fiel.
No fundo, este relógio marca o tempo certo porque recusa acertar os ponteiros.
E se o leitor chegar ao fim com a sensação de que tudo ficou para depois... perfeito.
O poema cumpriu o horário.
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Fátima Vale