29 março, 2024

Palavras primordiais


Quieta, sentada na portada da minha casa, vejo os dias a sentarem-se ao meu lado. Todos os dias. À minha volta, com sons esparsos, mas distintos. Alguns, tão desbocados que me obrigam a fugir no silêncio ferido. Os sussurrados sempre me fascinaram, até um dia entender que o sussurro era apenas uma forma de sorver o outro. Os dias dos risos, risos destrambelhados que me sacodem sem piedade. Os dos choros, onde as lágrimas escorrem como regos, ou se tornam insuportáveis com a falta delas. E os gritantes, esses, ensurdecem-me o bastante para saber esconder-me na minha concha, vivamente esculpida no meu debruçar em feto, espiral, ou erva rente ao chão. A erva, nos seus murmúrios, ainda que por vezes enlouquecidos, traz aquele tilintar ténue, um som de passos de ave, ou insetos confabulando. Esses dias são sempre especiais, trazem consigo cheiros mágicos e aquele quase silêncio que nos embala no sonho. Porque destilam o ruído em água subterrânea, e celebram com parcimónia as palavras fundamentais. As que, entre a erva, crescem e ecoam no ar límpido da madrugada. Palavras primordiais. Como “casa”.

Almerinda Alves