16 março, 2025

Teorema da matriarca


TEOREMA DA MATRIARCA
 
(Cálculo das Identidades Desgarradas)
 
I. Série Infinita (Mãe procura Mãe)
 
Ela pergunta pela mãe morta
como quem tenta resolver um enigma sem fim.
Cada “onde está a mãe?” é um fio solto
que puxa as memórias cada vez mais distantes,
tentando tecer um manto que a proteja do vazio.
 
A mente dela é um rio sem margens,
onde os tempos se misturam.
O hospital é agora a casa da infância,
o marido transforma-se no pai perdido –
as dores de hoje vestem as sombras de ontem.
 
II. Paradoxo dos Papéis
 
No quarto branco, o marido descansa entre lençóis,
e ela não vê apenas o homem que escolheu.
Ele é também o pai,
um espelho baço
onde a infância regressa.
 
A ternura e o desamparo confundem-se,
como num corredor de espelhos
onde cada reflexo se dobra sobre o outro,
até já não saber quem cuida de quem.
 
III. O Nome como Último Mapa
 
“Bem sei que és a Fátima” –
diz-me, como quem estende um barco
num rio de esquecimento.
 
O nome é um remendo,
um pedaço de terra firme
num mundo que se desfaz em névoa.
 
Eu chamo-lhe “mãe”,
como quem enterra uma semente
na terra incerta do tempo.
 
IV. O Bordado das Horas
 
Os seus dias são uma tapeçaria de nós desfeitos:
 
De manhã, sou filha.
 
À tarde, sou irmã.
 
À noite, sou uma criança perdida
a segurar-lhe as mãos como se segurasse um fio de luz.
 
O hospital torna-se uma encruzilhada,
onde os caminhos do passado e do presente
se sobrepõem como estradas antigas
desenhadas umas sobre as outras.
 
“O pai está doente, coitadinho”, diz.
Dois rostos sobrepostos,
dois tempos que se chocam
como barcos na maré confusa da memória.
 
V. A Geografia do Cuidado
 
Cuidar dela é caminhar sobre gelo fino.
Cada gesto é um fio de costura
num tecido que insiste em desfiar-se.
 
Hidrato-lhe a pele
como quem escreve cartas
para alguém que já partiu,
mas ainda espera resposta.
 
VI. A Noite dos Fantasmas Vivos
 
Na madrugada, os medicamentos
dissolvem as paredes do real.
 
Vejo-a a falar com a mãe-fantasma,
como duas crianças.
 
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Fátima Vale