17 março, 2025

um arco em suspensão

 
Não é fácil ser eu - dizia ela para si, contando os passos como favos de mel a adoçar as memórias.
 
A solidão é subreptícia, ardilosa. Ataca-nos pelo flanco quando menos esperamos. Entra dentro de nós e instala-se sem que nos apercebamos. E convivemos com ela todos os dias, numa ténue rede de palavras que não são ditas. O silêncio é fundamental. Único no seu género, um silêncio imutável e determinado. Um silêncio que vai pesando cada vez mais, a alma submersa em mudos nevoeiros e um crepuscular e crescente desejo de beber da fonte perdida nos recantos da memória.
 
A minha casa está repleta de silêncios. Confrangedores e pungentes, muito pouco ou nada misericordiosos, assim o sinto. O meu destino está inscrito nestas paredes, nascidas na esperança que se dobrou em dores inesperadas e que marcaram para sempre as vidas que acabavam de renascer. Levo comigo um segredo intenso e debato-me nas contradições da existência. Contudo, permaneço aqui, como se uma força invisível me impedisse de ocupar qualquer outro lugar. Sei que posso sair sempre e quando quiser, mas um sentimento de dever, ou as redes da solidão que me envolvem, impedem-me de desenhar os passos. Não me encolho, habito este espaço sem parcimónia, mas assustadoramente consciente de uma força maior que determina a minha capacidade de me mover, para fora. Todos os meus lugares, provisórios ou não, conjugam-se aqui, no meu espaço de redenção. As saudades das pessoas e dos sítios são perenes e perfeitos na minha memória danificada. Como um vidro estilhaçado, a luz recorta-se em pedaços e traz-me vislumbres, que eu edifico com cuidado e dedicação. Se criar foi sempre a força motriz da minha vida, pergunto-me que chama me alimenta agora. Com uma lucidez fria e devastadora, os meus gestos tornam-se lentos e vagos, como se o ar se movesse. Porque se o meu corpo carrega uma âncora, o meu pensamento corre e discorre, veloz quanto o vento. O mesmo vento que me sugou palavras, gestos e paixões no meu passado. As paixões são agora mais vivas do que nunca, neste recipiente sem fundo, prenhe de luz e discernimento, diria. E tardo em chegar.
 
Tardo em chegar ao ponto que define o meu presente, aparentemente impessoal e com o peso da solidão a arrastar os meus passos. Não luto, já não luto. Deixo que a corrente, e as correntes, me definam, sem prováveis surtos de rebeldia. Como se a doçura que sempre viveu em mim e apenas pressentida por poucos, mascarada tantas vezes de melancolia, estranheza até, essa doçura é agora real e suaviza permanentemente os meus já poucos medos e inseguranças.
 
Agridoce, ainda. Teimo em revoltear nas atitudes e forças contrárias. Sempre evitei, por não gostar, a doçura extrema e submissa. Submissão continua a ser uma roupagem que não me pertence. Não conseguimos iludir a nossa própria natureza. Apenas usamos diferentes cores e traçamos novas perspectivas. Uma transformação leve, mas eficaz, para quem não nos conhece. De facto, nunca se conhece realmente alguém. Sentimos mais do que conhecemos. É uma questão de afinidade espiritual ou a sua conjugação espiritual. Se esta não existe, todos os esforços de comunicação serão em vão, ou muito efémeros. Nem sempre é mau. Vivemos as nossas vidas com simples rotinas e a certeza de uma presença, um bafo humano e reconciliador. Simples, mas nada simples. De novo, volto ao enigma da solidão.
 
Não consigo distinguir em mim a vontade ou a tal doçura que se deixa embalar pelos anjos e fadas ou duendes, seres reais do meu mundo incólume ao cortante exterior. O Amor, afecto e empatia, e a Beleza, nos gestos e nas coisas, foram sempre e ainda são o meu calcanhar de Aquiles. Antes costumava acreditar na justiça, mas sei agora, mais do que nunca, que é apenas um conceito elaborado, pela incapacidade humana do equilíbrio entre as forças contraditórias do bem e do mal. Torna-se assim num sentimento pessoal e inescrutável. Estou e vivo agora um tempo que não se ocupa de tais coisas, quando formalmente expostas. Importa-me sim a escassez da humanidade, da gentileza, da compaixão. É como se vivesse uma religiosidade, mas sem religião. É o meu espírito a purificar-se de uma vida de lutas desnecessárias, mal formadas, dolorosas e findas num vazio da compreensão.
 
Sempre gostei de estar só, desde que me conheço. Mesmo quando, com amigos para falar, conviver e divertir-me, mesmo quando o trabalho e a família, os deveres, me absorviam prazenteiramente por inteiro, viria sempre a compulsão de um tempo a sós, onde repousava e me energizava, pronta para novas batalhas. Se existia um conflito, andar na areia, terra ou ruas da cidade, acalmava-me e dulcificava-me por inteiro.
 
Porque no meu interior sou um trovão. Por isso, uma amiga que me conhecia bem dizia que eu caminhava para descarregar assim os meus relâmpagos. Agora sou apenas um trovão adormecido, ou, como já escrevi uma vez, “um trovão, no centro do fogo, que se desfaz em transparências, pequenos mistérios inscritos no sopro de um vento invisível”.
 
A minha transparência mal acolhida relembrou-me um dos últimos escritos do meu livro, já no ponto de viragem.
“Retenho entre os dedos um arco de criança que leva a roda, vagarosamente, entre as pedras turbulentas e ervas danadeiras. Nunca saberei a cor dos meus olhos. Porque só o outro pode olhar nessa transparência, e ver-se em mim. E, de todas as cores, saberá quem sou: um arco, em suspensão.”
 
Creio que só neste ponto da minha vida tenho a perfeita compreensão do que escrevi. Sim, sou eu, “um arco em suspensão”.
 
Agora é tempo de ir beber o meu café com canela.
 
 
Almerinda Alves