26 abril, 2025

O Polegar do Estado

 
O Polegar do Estado
 
Há notícias que me doem nas costelas como se me arrancassem ossos para construir tribunais.  
Não sei onde começa o horror — se no gesto ou na linguagem que o anuncia.  
Hoje li que um país decidiu matar sempre que puder.  
Não é metáfora. Não é teatro.  
É ordem política.  
É sentença vestida de protocolo.
 
Recorrer à morte como quem recorre a um extintor.  
“Aplicar a pena capital sempre que possível.”  
Sempre que possível.  
Como se matar fosse uma disponibilidade,  
uma cláusula no fundo da página,  
um botão de recurso.
 
Lembro-me de Eichmann.  
Não gritava.  
Não sangrava.  
Era só eficiente.  
Arendt chamou-lhe banal.  
Eu chamo-lhe doença:  
a doença de obedecer sem pensar,  
a febre de viver sem escutar.
 
O Estado decide matar.  
Como quem limpa um problema.  
Como quem varre um nome.  
Como quem apaga uma voz.  
E nós?  
Nós vemos.  
Nós dizemos: “é a lei”.  
Mas eu não sou cúmplice.  
Eu não sou papel selado.
 
Quem decide que uma vida pode ser descartável  
decide, no fundo,  
que todas o são.
 
Quem mata em nome da justiça  
funde o tribunal com a câmara de gás.  
E há quem aplauda.  
Há quem chame a isso civilização.
 
E eu pergunto:  
Onde está a flor que devíamos guardar na boca do condenado?  
Onde está o espanto?  
O espanto.  
Esse grito antigo que nos salvava da barbárie.
 
Não quero viver num mundo onde matar se torne hábito.  
Onde o abismo se normalize.  
Onde a justiça cheire a formol.
 
Quero o milagre da escuta.  
O corpo de cada um como santuário.  
O silêncio como gesto sagrado.  
O gesto como raiz.  
E a vida — humana, vegetal, animal —  
como altar.
 

Fátima Vale