O Polegar do Estado
Há notícias que me doem nas costelas como se me arrancassem ossos para construir tribunais.
Não sei onde começa o horror — se no gesto ou na linguagem que o anuncia.
Hoje li que um país decidiu matar sempre que puder.
Não é metáfora. Não é teatro.
É ordem política.
É sentença vestida de protocolo.
Recorrer à morte como quem recorre a um extintor.
“Aplicar a pena capital sempre que possível.”
Sempre que possível.
Como se matar fosse uma disponibilidade,
uma cláusula no fundo da página,
um botão de recurso.
Lembro-me de Eichmann.
Não gritava.
Não sangrava.
Era só eficiente.
Arendt chamou-lhe banal.
Eu chamo-lhe doença:
a doença de obedecer sem pensar,
a febre de viver sem escutar.
O Estado decide matar.
Como quem limpa um problema.
Como quem varre um nome.
Como quem apaga uma voz.
E nós?
Nós vemos.
Nós dizemos: “é a lei”.
Mas eu não sou cúmplice.
Eu não sou papel selado.
Quem decide que uma vida pode ser descartável
decide, no fundo,
que todas o são.
Quem mata em nome da justiça
funde o tribunal com a câmara de gás.
E há quem aplauda.
Há quem chame a isso civilização.
E eu pergunto:
Onde está a flor que devíamos guardar na boca do condenado?
Onde está o espanto?
O espanto.
Esse grito antigo que nos salvava da barbárie.
Não quero viver num mundo onde matar se torne hábito.
Onde o abismo se normalize.
Onde a justiça cheire a formol.
Quero o milagre da escuta.
O corpo de cada um como santuário.
O silêncio como gesto sagrado.
O gesto como raiz.
E a vida — humana, vegetal, animal —
como altar.
Fátima Vale