Ensaio de Humanidade
1
A poeta é feita de água.
Setenta por cento de mares interiores,
que escrevem o sal na boca e apagam os rastos na areia.
2
Os ossos conspiram com a gravidade.
São estantes de espectros,
dicionários minerais onde a língua do silêncio se arquiva.
3
Cada vértebra: uma gaveta.
Cada falange: uma pedra alfabetizada.
Sem gravidade, perder-se-ia a gramática do corpo.
4
A pineal é um candeeiro aceso no sótão da noite.
Colhe pólen das estrelas
e ilumina sílabas que ainda não nasceram.
5
É biblioteca sem paredes.
Por ela, o poema atravessa descalço
e regressa com o invisível nos bolsos.
6
As entranhas são a assembleia.
Microrganismos que não sabem ler
fermentam ritmos e soltam gases: sátira oculta.
7
O corpo da poeta recorda:
o riso também é sagrado.
8
O coração abre o parlamento.
Convoca ministérios de células,
pronuncia discursos solenes em rubor.
9
Mas o compasso denuncia-se,
o cerimonial rompe-se:
o plenário torna-se tamborim.
10
No auge da desordem,
o Espírito atravessa o muro do tórax
como sombra de claridade.
11
Não preside, não legisla.
Senta-se e sentencia:
“Este não é um coração, é um anfiteatro de fogo.
Cada batida: ensaio do infinito.”
12
A pele é o diário.
Regista vento, pólen, cicatrizes.
As rugas são os versos lentos da gravidade.
13
O sangue, rio insondável,
escreve para dentro.
Mesmo no silêncio,
continua o poema nas margens ocultas.
14
No fim, a poeta é a hóspede do corpo.
Escriba de uma assembleia viva,
ecossistema inquieto que ensaia a humanidade.
15
Ser humano:
provisório, aberto, inacabado.
Ensaio onde matéria e espírito
se descobrem mutuamente.
Fátima Vale