OS MONSTROS ADORAM VER-SE AO ESPELHO
Os monstros adoram ver-se ao espelho.
Já não se confrontam com o horror: reconhecem-se.
O espelho lhes devolve a imagem glorificada do que antes era interdito,
e o interdito, aplaudido, transforma-se em moral pública.
O grotesco tornou-se padrão.
É a nova gramática da autenticidade:
gritar, humilhar, exibir a ferida
como troféu de uma sinceridade sem ética.
O monstro descobriu que a obscenidade emociona,
que o ódio comove,
que a violência, bem encenada, rende votos.
A multidão já não teme o abismo, tira selfies à beira dele.
Aplaude o ruído como se fosse verdade,
sente-se viva na proximidade da queda.
E o monstro, sorridente, promete o simples:
“Eu sou como vós.”
E é essa a armadilha, ele é, de facto, como eles.
A era digital deu corpo ao narcisismo colectivo.
Cada tela é um espelho onde a turba se admira.
O grotesco já não é o outro:
é o reflexo ampliado da própria fome.
A mentira tornou-se ornamento,
a ignorância, bandeira,
a crueldade, entretenimento.
O eleitorado do monstro não é cúmplice: é autor.
Cria, partilha, comenta, encena.
O horror tornou-se participativo.
Vivemos uma democracia estética da vulgaridade,
onde o que brilha é o que mais fere.
Assim se valida o grotesco:
porque promete libertar o homem do peso da consciência.
Ser monstruoso é não pensar,
não justificar o rancor,
gozar a impunidade de quem se diz “autêntico”.
A autenticidade é a mentira mais popular do nosso tempo.
A verdade exige silêncio
e o silêncio foi abolido.
Tudo grita, tudo opina, tudo se emociona sem lastro.
O pensamento é elitismo.
O discernimento, ofensa.
O monstro triunfa porque é performático:
transforma o grotesco em linguagem, o escárnio em comunhão.
E o povo, sedento de espectáculo, confunde a encenação com destino.
A política converteu-se em teatro de horrores,
onde o grotesco é o protagonista ovacionado.
O público não se revolta, diverte-se.
Rir é a nova forma de submissão.
O grotesco venceu porque se tornou confortável:
o perfume da barbárie em frascos de normalidade.
Mas há algo mais profundo e terrível:
a sedução do grotesco revela o esgotamento do humano.
É o cansaço da complexidade,
a nostalgia de uma brutalidade perdida,
a ânsia de regressar ao estado pré-moral,
onde tudo é permitido porque nada é sagrado.
E o espelho, cúmplice, sustém o reflexo.
Nele, o monstro penteia o ego e a multidão sorri,
reconhecendo-se no mesmo sorriso deformado.
O grotesco é a máscara que a sociedade usa
para não admitir a sua própria falência espiritual.
Fátima Vale
Os monstros adoram ver-se ao espelho.
Já não se confrontam com o horror: reconhecem-se.
O espelho lhes devolve a imagem glorificada do que antes era interdito,
e o interdito, aplaudido, transforma-se em moral pública.
O grotesco tornou-se padrão.
É a nova gramática da autenticidade:
gritar, humilhar, exibir a ferida
como troféu de uma sinceridade sem ética.
O monstro descobriu que a obscenidade emociona,
que o ódio comove,
que a violência, bem encenada, rende votos.
A multidão já não teme o abismo, tira selfies à beira dele.
Aplaude o ruído como se fosse verdade,
sente-se viva na proximidade da queda.
E o monstro, sorridente, promete o simples:
“Eu sou como vós.”
E é essa a armadilha, ele é, de facto, como eles.
A era digital deu corpo ao narcisismo colectivo.
Cada tela é um espelho onde a turba se admira.
O grotesco já não é o outro:
é o reflexo ampliado da própria fome.
A mentira tornou-se ornamento,
a ignorância, bandeira,
a crueldade, entretenimento.
O eleitorado do monstro não é cúmplice: é autor.
Cria, partilha, comenta, encena.
O horror tornou-se participativo.
Vivemos uma democracia estética da vulgaridade,
onde o que brilha é o que mais fere.
Assim se valida o grotesco:
porque promete libertar o homem do peso da consciência.
Ser monstruoso é não pensar,
não justificar o rancor,
gozar a impunidade de quem se diz “autêntico”.
A autenticidade é a mentira mais popular do nosso tempo.
A verdade exige silêncio
e o silêncio foi abolido.
Tudo grita, tudo opina, tudo se emociona sem lastro.
O pensamento é elitismo.
O discernimento, ofensa.
O monstro triunfa porque é performático:
transforma o grotesco em linguagem, o escárnio em comunhão.
E o povo, sedento de espectáculo, confunde a encenação com destino.
A política converteu-se em teatro de horrores,
onde o grotesco é o protagonista ovacionado.
O público não se revolta, diverte-se.
Rir é a nova forma de submissão.
O grotesco venceu porque se tornou confortável:
o perfume da barbárie em frascos de normalidade.
Mas há algo mais profundo e terrível:
a sedução do grotesco revela o esgotamento do humano.
É o cansaço da complexidade,
a nostalgia de uma brutalidade perdida,
a ânsia de regressar ao estado pré-moral,
onde tudo é permitido porque nada é sagrado.
E o espelho, cúmplice, sustém o reflexo.
Nele, o monstro penteia o ego e a multidão sorri,
reconhecendo-se no mesmo sorriso deformado.
O grotesco é a máscara que a sociedade usa
para não admitir a sua própria falência espiritual.
Fátima Vale