29 outubro, 2025

Se uma nave viesse

 
Se uma nave viesse
não viria de alumínio ou aço,
nem rasgaria o céu com o estrondo dos motores.
Viria em silêncio,
num sopro de claridade que a retina humana mal suportaria.
 
Não desceria do espaço,
erguer-se-ia da consciência.
Nasceria no ponto exato onde o medo se confunde com o assombro,
onde a matéria se interroga sobre o seu próprio nome.
 
Os governos tentariam regulamentar o invisível. Em vão.
Os exércitos apontariam radares ao indizível. Em vão.
Os poetas, porém, reconheceriam:
é o estrangeiro que retorna, não vem de outra galáxia, mas do futuro do nosso olhar.
 
As religiões fragmentariam o espanto em dogmas,
as bolsas converteriam o medo em lucro,
os ecrãs fariam da revelação um espetáculo.
Mas no âmago, no pulsar íntimo das criaturas,
algo se deslocaria,
como se o tempo tivesse mudado de textura.
 
A nave — se viesse —
não procuraria colonizar nem comunicar.
Viria apenas cumprir o seu ofício de espelho:
mostrar-nos o que somos quando o ruído cessa.
 
Talvez não houvesse apocalipse,
apenas um lento desabrochar do entendimento:
que o humano é apenas uma forma de respiração da Terra,
um breve lampejo de consciência na vastidão da matéria.
 
E talvez — só talvez —
percebêssemos, com uma lucidez dolorosa,
que a verdadeira nave sempre esteve aqui,
a girar em silêncio no escuro sideral,
carregando dentro de si
o sonho e a ruína do que chamamos
Humanidade.
 

Fátima Vale