29 dezembro, 2025

hi ha un home podrint-se a l'aigüera / há um homem a apodrecer na pia


hi ha un home podrint-se a l'aigüera 
 
Amorrada al mugró de la mare eterna, estrenyent fortament el penis del fecundador, amb les estranyes seques a la boca, la vagina plena de blanques paraules, el semen entre els meus pits… Fa tres-cents dies, tres-centes nits que el sopar és a l’aigüera: Muntanyes de pinyols i restes. La cadena de forquilles a popa, talment un vaixell que s’enfonsa entre onades de microbis. El peix de la mística lliscant entre el sabó i el pa florit. Un gra d’arròs revolucionari al fons d’una cassola vora la llagosta decapitada. Dia i nit barallant-se dins un pinyol… Dins el verdet un vas llisca cap a la superfície del transparent. El pensament se’m beu el caos. Una mosca cau entre el canelobre de la veu i s’encén la petita flama de la felicitat. L’espès mantell de boira va cobrint-ho tot. Creus i ganivets a la boca. Navalles i roses a la veu. Les calaveres dels animals es pregunten si mai els ulls els tornaran a la conca mentre els seus ossets s’embalen cap al forat embussat del temps. Mig d’esma enfonso la mà sota la pila d’atuells i d’immundícia i el trobo. Hi ha un home que es podreix a l’aigüera. Ell i el seu sexe. Els toco. Tres-cents dies sense neteja. Tres-centes nits sense neteja. Soc una porca. Busco sabons amoníac lleixiu desincrustants salfumants desembussadors mentre els cucs foraden la tele, els líquids m’embruten els segons i l’esperit em busseja pel pantà de les emocions en un pulmó lliure i irreversible cap a Ell.
 
(Jo sé el nom del meu mort
i el dic amb la boca tancada)
 
 
Dolors Miquel i Abellà
 
 
há um homem a apodrecer na pia 
 
Com a boca no mamilo da mãe eterna, apertando fortemente o pénis do fertilizador, com as entranhas secas na boca, a vagina cheia de palavras brancas, o sémen entre os seios... Faz trezentos dias, trezentas noites que o jantar está na pia: montanhas de ossos de azeitona e restos. A cadeia de garfos na popa, como um barco que se afunda entre ondas de micróbios. O peixe místico entre o sabão e o pão mofado. Um grão de arroz revolucionário no fundo de uma panela, ao lado da lagosta decapitada. Dia e noite lutando dentro do osso de uma azeitona. Do verdor um copo desliza para a superfície do transparente. O pensamento bebe o caos. Uma mosca cai entre dois silêncios, entre três cai um espermatozóide, entre quatro enche de sangue o candelabro da voz e acende-se a pequena chama da felicidade. Um espesso manto de névoa cobre tudo. Cruzes e facas na boca. Navalhas e rosas na voz. Os crânios dos animais perguntam se algum dia os seus olhos voltarão para suas bacias enquanto os seus pequenos ossos correm para o buraco do tempo. Maquinalmente meto a mão debaixo da pilha de louça e imundície e dou com ele. Há um homem a apodrecer na pia. Ele e o seu sexo. Toco-lhes. Trezentos dias sem limpar. Trezentas noites sem limpar. Sou uma porca. Procuro sabonetes amoníaco, lixívia descalcificantes ácido clorídrico desentupidores enquanto os vermes perfuram a televisão, os líquidos sujam os meus segundos e o meu espírito mergulha no pântano das emoções, a plenos pulmões e irreversivelmente para ele.
 
 (Sei o nome do meu morto
digo-o com a boca fechada.)
 

canção de aghar

 

28 dezembro, 2025

ces mains / estas mãos

ces mains sont-elles celles de mes quinze vingt trente-cinq
 
cinquante
ans
ces mains dans le silence
 
posées sur le drap
recouvertes de soleil
cette main ressemble à l’une des miennes
ouverte
 
délassée
je peux respirer son parfum
je peux sentir sa joie
je voie ses plis ses veines sa couleur ses grains de beauté
sans en connaître les avenirs
la main qui m’accompagne
ici et maintenant
je la pose sur mon sein
pléthore de désirs vissés
dans les paumes
 
 
Carole Bijou
 
 
estas mãos são as dos meus quinze vinte trinta e cinco
 
cinquenta
anos
estas mãos em silêncio
 
colocadas sobre o lençol
revestidas de sol
esta mão parece uma das minhas
aberta
 
descansada
posso respirar o seu perfume
posso sentir sua alegria
vejo -lhe as dobras as veias a cor os seus grãos de beleza
sem lhe conhecer os futuros
a mão que me acompanha
aqui e agora
ponho-a no peito
pletora de desejos aparafusados
nas palmas das mãos


23 dezembro, 2025

zvířata přicházejí do města / os animais chegam à cidade

Jednou za rok loví bažanti lidské bytosti:
dělají věci, které člověka neodolatelně přitahují.
Každý bažant si pak jednoho člověka vybere,
ten ho zastřelí, je nucen ho oškubat, odnést domů a sníst.
Tak se bažant dostane dovnitř člověka:
žije v něm, čeká a skrývá se, ale člověk o tom neví.
Když se množství bažantů dostane do množství lidí,
náhle zaútočí. Všichni budou nesmírně překvapení.
Tomu se říká vnitřní převrat.
 
Marie Iljašenko
 
Uma vez por ano, os faisões caçam seres humanos.
Fazem coisas que atraem as pessoas de modo irresistível:
depois todos escolhem um, o faisão dispara sobre o homem
que se vê forçado a depená-lo, levá-lo para casa e comê-lo.
Eis como um faisão se mete dentro do homem, vive nele,
espera e nele se esconde, mas sem se notar.
Quando muitos faisões se adentram em muitos homens,
de repente atacam.
As pessoas que não carregam dentro um faisão surpreender-se-ão muito
E tudo muda um pouco: chama-se a isto reviravolta interna.


19 dezembro, 2025

Portugal - O Relógio Avariado que Afinal Marca o Tempo Certo

Agora mete-se o Natal nos bolsos das gabardinas,
entre recibos e chaves,
e fecha-se a porta a sete chaves de vento.
Tá a ver?

O calendário é um corpo desmontável:
vendemos os joelhos em Agosto,
alugamos a coluna vertebral em Abril,
e os pulsos — bem! — têm donos diferentes.
Cada um anda com o seu andamento interno,
um coração descompassado a bater
contra as paredes do relógio biológico.

Agora só para o ano, diz a voz
que habita o telefone em chamada não atendida.
O “para o ano” é um país estrangeiro
onde os passaportes são feitos de papel higiénico
— fino, desmanchável, urgente.
Plantamos minutos em vasos demasiado pequenos,
colhemos segundos raquíticos.
É a agricultura de subsistência do tempo:
minifúndios temporais cercados
por arames farpados de compromisso.


Surreal? Olha:
o autocarro da manhã
passa à tarde com os passageiros do futuro.
Tudo é adjacente, nada coincide.
Cada um com o seu ritmo, 
o seu pequeno latifúndio
de ansiedade a circular em veículo próprio.
E no centro da rotunda, parada,
a estátua de um deus menor segura
um cronómetro desmontado.
Tá a ver?


Agora mete-se o Natal outra vez,
e o ano que vem será um envelope
selado com cera de ouvidos moucos.
Entrega-se na próxima esquina de um tal talvez.
A política do adiamento: governamos
os restos de festa, os minutos de tolerância,
os pedaços de tempo que sobram
quando todos os relógios do reino
decidem fugir pelo ralo
numa coreografia de ponteiros.


E o poema, este poema,
é um mapa impossível
desse território esfacelado.
Lê-se de trás para a frente
e de lado, no intervalo
em que a água ferve para o café.
Tá a ver?
Agora só para o ano.
Se o ano couber na ranhura
da consciência colectiva.
Se não for engolido
pelo buraco negro do “depois logo se vê”.


Posfácio (ironicamente necessário)

Este poema não tenta organizar o tempo, limita-se a expor o seu mau funcionamento.

O relógio avariado é O método. Marca atrasos, adiamentos, desvios e pequenas fraudes quotidianas com uma precisão quase científica.

Nada está fora do sítio: é o sítio que se fragmenta. O calendário surge como uma anatomia precária, a política como gestão de sobras, e o futuro como uma promessa embrulhada em material descartável.
Se o texto parece surreal, é porque insiste em ser fiel. 

No fundo, este relógio marca o tempo certo porque recusa acertar os ponteiros.

E se o leitor chegar ao fim com a sensação de que tudo ficou para depois... perfeito.
O poema cumpriu o horário.


Fátima Vale