18 fevereiro, 2023

Esses bichos que nos comem por dentro

 

O esquecimento vai falhando cada dia. É o tormento de viver com a memória sem imagens que mais apoquenta. Sorve-se os últimos golos da chávena, imita-se o quente por dentro, o conforto que se retém, apesar dos soluços. Quer-se o abraço que nunca virá, o afago desejado, a palavra que sossega os bichos. Esses bichos que nos comem por dentro, tão silenciosos quanto a morte, tão subtis quanto a ilusão de ser, sem solidão, sem angústia, sem sentir. A dor quer-se, viva e pungente, quer-se a afirmar a vida, os tropeços, os desamores, as angústias de ser o primeiro, ou o mais fundo, o desafio de confiar no abismo.

A verdade torna-se uma visão, uma forma de vida. Pegamos em galhos, flores silvestres, por momentos sentimos a vida a pulsar-nos nas mãos, e queremos, queremos demais esse toque, esse odor, essa vista, queremos tudo. Não sabemos ou não queremos saber, que isso foi apenas um pequeno fulgor do que almejamos.

Queremos mais. Queremos sempre mais. Olhamos, por vezes vemos, por vezes ...pensamos que somos um broto de um pequeno ramo. E somos felizes! Essa ínfima existência, essa pequena luz é unicamente bastante. É isso. Um ponto. O mais perfeito retrato da vida. Um ponto, simplesmente.

Depois o ponto expande-se, alimenta-se do ar, cresce sem que assim o queira. É uma urgência, e também uma bênção. E , sem que o queira, espalha-se pelos campos, voa nos ventos inesperados, aterra nos mais insólitos lugares, vivifica-se.

O acaso transmuta-se. As coisas reúnem-se numa vida a fazer de conta, são ar e fogo, água ou terra. A imagem grava-se no tempo, como se as mãos aí se gravassem, entre o metal, o aéreo e o sonho, alquimia sem mistério, a vida no seu esplendor vertido em formas, em lugares, em recantos de contemplação.

Bastante escusos. Bastante solos. Bastante limpos.

Mas nunca bastante.


Almerinda Alves