06 maio, 2025

Código do Desnudamento


O Naufrágio das Certezas
 
Quando a palavra se veste de certeza,  
perde o tremor de asa que a fazia voar —  
torna-se estátua de sal no deserto do óbvio.  
Atenção, agora, é pássaro sem bico:  
canta o hino do que se calou  
para que o silêncio, ácido sábio,  
dissolvesse a armadura do sentido.  
 
Observa —  
como a palavra-certeza congela rios:  
sob a superfície lisa, peixes de inquietação  
nadam em círculos, mastigam algas  
de perguntas por fazer.  
Até o vento, que antes dançava nas folhas,  
apodrece em slogans pregados  
nos postes da razão.  
 
Interroga —  
o esqueleto da palavra petrificada.  
Por que o verbo "ser" tem medo de derreter?  
O que a linguagem esconde ao trancar-se em definições?  
Na catedral do dogma,  
o amor não é hóstia —  
é o rato que rói os livros sagrados  
enquanto a lua, herege,  
escreve novos salmos na pele dos hereges.  
 
Escolhe —  
não a palavra-cárcere, mas a palavra-semente.  
O amor, jardineiro do caos,  
planta sílabas de sombra no jardim do excesso de luz.  
Segue o rasto do que se desfez:  
a certeza morta é adubo  
para o musgo que cobre  
as pedras do próximo enigma.  
Colhe o fruto que nasce da podridão —  
não a resposta, mas o mofo sagrado  
que corrói os alicerces do já sabido.  
 
Código do Desnudamento:  
O poema é a palavra despindo-se.  
Cada verso, um manto caído:  
a nudez que resta não é vulgar —  
é o véu rasgado revelando  
que por trás de todo o véu  
há apenas outro véu a rir.  
Lê com a língua cortada e os dedos em brasa:  
o que se perdeu na certeza  
regressa como vento norte  
a apagar as pegadas do dogma  
na areia movediça do real.  
 
Nota do Começo Descalço:  
Nem raiz, nem fruto:  
sê o intervalo em que a palavra  
— ainda não dita, já não pensada —  
respira como um réptil sob a lua cheia.  
O Universo é a gengiva sangrando  
enquanto mastiga o osso do absoluto.  
Tu és o dente quebrado,  
a dor que antecipa  
o próximo nascimento  
de uma língua desconhecida.  
 
A certeza é uma cela que a palavra construiu para si.  
  O novo começo está na fuga — não pela porta, mas pela fissura  
  onde a luz, ao entrar, descobre que também é escuridão disfarçada.  
- A leveza nasce quando a palavra, cansada de ser dona de si,  
  se despe e dança nua no mercado das ideias —  
  não para ser comprada, mas para incendiar as tendas.  
- O que ficou por dizer não é segredo: é a sementeira do caos  
  onde o próximo verbo, selvagem, aprenderá a andar  
  sobre as cinzas do que um dia se chamou "verdade".
 
 
Fátima Vale