O Naufrágio das Certezas
Quando a palavra se veste de certeza,
perde o tremor de asa que a fazia voar —
torna-se estátua de sal no deserto do óbvio.
Atenção, agora, é pássaro sem bico:
canta o hino do que se calou
para que o silêncio, ácido sábio,
dissolvesse a armadura do sentido.
Observa —
como a palavra-certeza congela rios:
sob a superfície lisa, peixes de inquietação
nadam em círculos, mastigam algas
de perguntas por fazer.
Até o vento, que antes dançava nas folhas,
apodrece em slogans pregados
nos postes da razão.
Interroga —
o esqueleto da palavra petrificada.
Por que o verbo "ser" tem medo de derreter?
O que a linguagem esconde ao trancar-se em definições?
Na catedral do dogma,
o amor não é hóstia —
é o rato que rói os livros sagrados
enquanto a lua, herege,
escreve novos salmos na pele dos hereges.
Escolhe —
não a palavra-cárcere, mas a palavra-semente.
O amor, jardineiro do caos,
planta sílabas de sombra no jardim do excesso de luz.
Segue o rasto do que se desfez:
a certeza morta é adubo
para o musgo que cobre
as pedras do próximo enigma.
Colhe o fruto que nasce da podridão —
não a resposta, mas o mofo sagrado
que corrói os alicerces do já sabido.
Código do Desnudamento:
O poema é a palavra despindo-se.
Cada verso, um manto caído:
a nudez que resta não é vulgar —
é o véu rasgado revelando
que por trás de todo o véu
há apenas outro véu a rir.
Lê com a língua cortada e os dedos em brasa:
o que se perdeu na certeza
regressa como vento norte
a apagar as pegadas do dogma
na areia movediça do real.
Nota do Começo Descalço:
Nem raiz, nem fruto:
sê o intervalo em que a palavra
— ainda não dita, já não pensada —
respira como um réptil sob a lua cheia.
O Universo é a gengiva sangrando
enquanto mastiga o osso do absoluto.
Tu és o dente quebrado,
a dor que antecipa
o próximo nascimento
de uma língua desconhecida.
A certeza é uma cela que a palavra construiu para si.
O novo começo está na fuga — não pela porta, mas pela fissura
onde a luz, ao entrar, descobre que também é escuridão disfarçada.
- A leveza nasce quando a palavra, cansada de ser dona de si,
se despe e dança nua no mercado das ideias —
não para ser comprada, mas para incendiar as tendas.
- O que ficou por dizer não é segredo: é a sementeira do caos
onde o próximo verbo, selvagem, aprenderá a andar
sobre as cinzas do que um dia se chamou "verdade".
Fátima Vale
Quando a palavra se veste de certeza,
perde o tremor de asa que a fazia voar —
torna-se estátua de sal no deserto do óbvio.
Atenção, agora, é pássaro sem bico:
canta o hino do que se calou
para que o silêncio, ácido sábio,
dissolvesse a armadura do sentido.
Observa —
como a palavra-certeza congela rios:
sob a superfície lisa, peixes de inquietação
nadam em círculos, mastigam algas
de perguntas por fazer.
Até o vento, que antes dançava nas folhas,
apodrece em slogans pregados
nos postes da razão.
Interroga —
o esqueleto da palavra petrificada.
Por que o verbo "ser" tem medo de derreter?
O que a linguagem esconde ao trancar-se em definições?
Na catedral do dogma,
o amor não é hóstia —
é o rato que rói os livros sagrados
enquanto a lua, herege,
escreve novos salmos na pele dos hereges.
Escolhe —
não a palavra-cárcere, mas a palavra-semente.
O amor, jardineiro do caos,
planta sílabas de sombra no jardim do excesso de luz.
Segue o rasto do que se desfez:
a certeza morta é adubo
para o musgo que cobre
as pedras do próximo enigma.
Colhe o fruto que nasce da podridão —
não a resposta, mas o mofo sagrado
que corrói os alicerces do já sabido.
Código do Desnudamento:
O poema é a palavra despindo-se.
Cada verso, um manto caído:
a nudez que resta não é vulgar —
é o véu rasgado revelando
que por trás de todo o véu
há apenas outro véu a rir.
Lê com a língua cortada e os dedos em brasa:
o que se perdeu na certeza
regressa como vento norte
a apagar as pegadas do dogma
na areia movediça do real.
Nota do Começo Descalço:
Nem raiz, nem fruto:
sê o intervalo em que a palavra
— ainda não dita, já não pensada —
respira como um réptil sob a lua cheia.
O Universo é a gengiva sangrando
enquanto mastiga o osso do absoluto.
Tu és o dente quebrado,
a dor que antecipa
o próximo nascimento
de uma língua desconhecida.
A certeza é uma cela que a palavra construiu para si.
O novo começo está na fuga — não pela porta, mas pela fissura
onde a luz, ao entrar, descobre que também é escuridão disfarçada.
- A leveza nasce quando a palavra, cansada de ser dona de si,
se despe e dança nua no mercado das ideias —
não para ser comprada, mas para incendiar as tendas.
- O que ficou por dizer não é segredo: é a sementeira do caos
onde o próximo verbo, selvagem, aprenderá a andar
sobre as cinzas do que um dia se chamou "verdade".
Fátima Vale