19 setembro, 2025

Requisição de Silêncio

 
Requisição de Silêncio
 
(Com Interrogatório e sangue nos dentes)
 
Se o Estado prefere tanques,
Senhora Directora da PIDE das Almas,
eis a minha declaração sob tortura:
confesso o verso escondido na sola do sapato,
a metáfora que fugiu pela janela do quarto de interrogatório,
e o estribilho que os porões não calaram —
UM PAÍS É UMA GAIOLA COM HINO
 
A contabilidade do horror!
Até os gemidos têm recibos em triplicado,
e os poemas, esses subversivos,
são revistados à porta do peito,
enquanto a pátria, de farda, cataloga
até o peso das lágrimas nos relatórios de segurança nacional.
 
Devolva-me o papel que o lápis engoliu de medo,
o grito que o muro-de-berlim-do-avesso regurgitou em Lisboa,
o instante em que o poeta, nu de palavras,
cuspia sonhos no colo do verdugo.
 
Nota de rodapé do sistema:
A arte é crime sem corpo de delito,
mas a alma tem impressões digitais.
 
Senhora Directora, cuidado com os arquivos da noite:
há sílabas que disparam como balas perdidas.
 
E se o orçamento for uma balança,
pesem isto:
o dinheiro para a guerra vem em sacos de ráfia,
enquanto a cultura — migalhas em envelopes de veneno —
é servida com o sorriso do funcionário do terceiro inferno.
 
Mas ouça o segredo que os muros sopram:
até a tinta invisível sangra,
até um poema torturado
guarda, sob as unhas,
sementes de um alfabeto
futuro.

 
Fátima Vale